quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro.



Lendas Escoteiras.
Esperança e gloria de um Chefe Escoteiro.

               Uma tarde modorrenta. Cansei de ler e na praia onde estava meus olhos fitavam o mar. Uma brisa gostosa soprava suavemente meu rosto. Eu já estive nas mais altas montanhas, nas vastidões das belas planícies do nosso sertão, vi coisas que poucos tiveram a oportunidade de ver. O primeiro vôo da borboleta azul, o botão da flor de uma orquídea presa no jequitibá a desabrochar. Ouvi o cantar do Sabiá lá na serra do Japi. Quantas vezes ouvi o som de uma cascata caindo sobre pedras amigas de longos e longos anos de jornada. Mas o mar... Este é maravilhoso. Ainda não vi nada que o tirasse da lista dos mais irresistíveis espetáculos da terra.

              Em férias lia Gandhi: O apóstolo da não violência. Um homem que se tornou uma lenda. Albert Einstein o saudou como o “porta-voz da humanidade”. Vez ou outra as gaivotas graciosamente se elevavam no ar e faziam lindas acrobacias. Eu cerrei os olhos lembrando-se do meu passado. Gosto de ler. Basta escolher o livro certo para o dia certo. Ele nos dá o conhecimento dos países distantes e nos faz descobrir lindas e maravilhosas situações que nunca em nossa vida iremos viver.

              Lembrei-me do chefe Martinho. Um grande Chefe que tive a honra de conhecer. Fomos amigos por longos e longos anos. Muitos acampamentos, viagens pelo pais e exterior. Martinho era Chefe de Grupo Escoteiro. Hoje um Diretor Técnico. Martinho era um chefe especial. No seu grupo brotava o amor, o respeito e não havia desigualdade só fraternidade. Era querido por todos no grupo e fora dele. No bairro era admirado e quando passava lhe saudavam com carinho. Vado Escoteiro, a melhor propaganda do escotismo é um escoteiro bem uniformizado e garboso na sua comunidade e como Chefe temos de dar o exemplo. Não atrasava e era o primeiro ao chegar. Prestativo não deixava nada faltar nas reuniões dos lobos e escoteiros

                 Martinho era firme quando um acontecimento ou um fato destoava ou seguia o caminho diferente do que preconizava a formação escoteira. Primava pela educação. Nunca se exaltava e nunca levantava a voz. Dizia ele que gritos nada mais são que agressões gratuitas. Não convencem ninguém.  Quando em Conselhos de Chefes ele não gostava de ser Salomão. Sabia o que dizer nas horas mais difíceis e nas tomadas de decisões. Dizia que era impossível alguém conhecer seus direitos se não conhecesse seus deveres. Durante muitos e muitos anos, Martinho foi reconduzido como Diretor Técnico apesar de sempre achar que não poderia ser eterno. Ninguém é insubstituível comentava.

        Uma vez ele teve um pequeno problema com os dirigentes regionais. Pequeno mesmo, mas ele foi firme e não deixou para amanhã o que tinha de fazer. Quando viu que correspondências não estavam resolvendo, pegou um ônibus e foi até a capital do estado. Voltou com um sorriso no rosto como a demonstrar missão cumprida. Martinho não era um erudito e nem tão pouco filosofo, mas sempre dizia que temos que ter conceitos adequados a cada situação. Para isso as conquistas de valores fazem com que a consciência haja de forma correta e fraterna.
    
      Uma tarde cheguei à sede e não vi ninguém. A porta estava aberta e no almoxarifado encontrei Martinho deitado no chão se contorcendo em dores. Aflito chamei uma ambulância e o levamos para o Hospital. Foram noites de agonia. Não dormi. Não fui trabalhar. Fiquei ali plantado com Cecília sua esposa. Ela era mais forte que eu. O médico nos trouxe o diagnóstico – Câncer nos pâncreas. Não tem muito tempo de vida. Meus olhos encheram de lágrimas. O hospital encheu-se de escoteiros e chefes. Vieram até dirigentes da Regional. Parecia um aparato de uma grande atividade escoteira. Eram tantos que precisaram vir policiais para organizar o trânsito.

       Martinho fez questão de receber a todos indistintamente. Apertou a mão de cada um que foi visitá-lo. A direção do hospital abriu uma exceção para os jovens. Martinho ficou todo o tempo com um sorriso nos lábios. Quase não falava. Sentia dores horríveis apesar de remédios fortes que tomava. Pouco descansava e dizia que as visitas vinham em primeiro lugar e o sono depois. Na madrugada do segundo dia Martinho me chamou e perguntou: - Meu amigo, todos dizem suas últimas palavras quando a morte aproxima. Eu não sei o que dizer. Acha que devo dizer alguma coisa?

       Falar o que para Martinho? Eu era a prova viva da admiração, do meu amor e do respeito que sentia por ele. Meus olhos molhados não mostravam outra coisa a não ser a dor enorme que estava sentindo. Martinho sabia a hora que iria se despedir para sempre. Pediu sua esposa que fizesse uma doação de todos seus pertences escoteiros ao grupo para eles doarem a quem precisasse. Se alguém for feliz com ele eu também serei feliz, disse. Cecília uma incansável mulher sempre ao seu lado.

      Não vi Cecília chorar. Uma mulher forte que dizia que nestas horas precisávamos dar força a ele. Martinho partiu uma semana depois. Setembro, outono, folhas secas caindo das árvores naquela necrópole sombria em um bairro afastado da cidade. Uma brisa leve e calma foram testemunhas da ida de Martinho para onde ele acreditava que existia outra vida. Nunca me falou nela. Nunca quis convencer a ninguém sua religiosidade. Suas exéquias foram simples. Vieram milhares para saudar e dar o último adeus a Martinho. Não ouve canções. A despedida foi só uma lagrima que aqui e ali era derramada por todos que foram seus amigos no passado. Martinho pediu para ser lembrado pelo que foi pelo que fez e não pela sua agonia de uma morte não esperada. Deixou saudades, muitas saudades.

            Alguns meses passados e o Conselho de Chefes do grupo votou em mudar o nome do grupo que seria uma homenagem a ele. Seria Grupo Escoteiro Chefe Martinho Alberto Flores. Cecília quando soube disse não. Mostrou um bilhete que ele escrevera horas antes da sua morte. Não quero tributos, que permaneça por toda a vida o nome que conheci, sempre amei e admirei. Grupo Escoteiro Estrelas Cintilantes. Até hoje visito Cecília. Uma forte mulher. Não pediu nada a ninguém. Trabalhava e dizia sempre que Netinho seu filho teria o que Martinho almejava.

            Nunca em minha vida esqueci Martinho. Ele foi um grande chefe. Reto nas suas ações. Ilibados e impoluto no seu exemplo pessoal. Martinho se foi, seu modelo deveria ser seguido por tantos e tantos chefes, que tem sob a sua responsabilidade dezenas de jovens que esperam muito mais. Esperam que eles seus chefes sejam exemplos para que possam seguir na trilha escoteira sabendo que um homem digno foi seu amigo em toda sua fase de crescimento.


Nota de rodapé: - A tarde vai aos poucos se afastando. A noite chega de mansinho. Ainda estou sentado na cadeira de praia de frente para o mar. O sol já se foi. A brisa está sendo substituída pelo orvalho que cai mansamente. Li poucas páginas da história de Gandhi. Meus olhos voltaram a ficar vermelhos. Nem sempre as lembranças são como a gente quer. A vida é assim, uns ficam e outros vão. Nosso destino está traçado e o que somos são frutos que nós criamos pensando que estávamos acertando para um futuro melhor. Gosto de lembranças. Elas me fazem viver. Trazem-me saudades ou mesmo sorrisos dos tempos que já se foram e não voltam mais.

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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