Lendas
Escoteiras.
A Lenda da
Piripirioca.
Foi em um acampamento na
Foz do Rio Doce que conheci Kaiowa, um índio da família dos Botocudos. Eu era
meninote e ele troncudo não tinha mais que dezesseis anos. Não foi a primeira
vez que atravessei o Rio Doce na foz do Rio Tibiriçá entre Conselheiro Pena e
Aimoré, para acampar nas margens deste rio que sempre me seduziu pela sua
beleza selvagem e misteriosa. Foi o meu primeiro acampamento que fiz sozinho como
sênior, um desafio para ver se podia sobreviver em uma floresta desconhecida.
Kaiowa chegou e sentou em volta do fogo. Nem levantou os olhos para me olhar.
Era como se ali ele fosse o senhor daquela floresta e não tinha nenhuma
satisfação a me dar. Fingi de morto e nada disse. Havia uma pequena chaleira
com café quente nas brasas da pequena fogueira e ele com firmeza levantou o
bico da chaleira e bebeu o café quente sem reclamar.
Ficamos ali eu e ele
calados e sem olhar um para o outro. Confesso que não tive medo. Sentia nele
uma áurea de índio bom e isto trazia uma grande paz entre nós. Deste
acampamento a “escoteira” (aquele que anda só) surgiu uma amizade que atravessou
os tempos e durou enquanto ele morou na Aldeia da Tribo “Manau”. Sempre que
podia eu o visitava na curva da onça do rio Tibiriçá. Só uma vez me convidou a
visitar sua tribo. Uma vez e nunca mais. Pediu-me segredo de tudo que visse e
eu como bom Escoteiro disse a ele que tinha uma só palavra e minha honra estava
acima de tudo. Não perguntei por que, pois se ele queria assim devia ter um
motivo muito forte para manter o segredo na tribo. Foi uma amizade de dois
meninos homens que se manteve por muito tempo. Sempre ficávamos as noites até
de madrugada em volta do fogo ouvindo o silêncio da noite ou mesmo suas
histórias que contava quando lhe apetecia. Esquecia até mesmo o frio cortante
do vento norte que subia o rio.
Kaiowa me ensinou muitas
técnicas mateiras. Como pescar sem vara, Subir em árvores com timbiras em
volta, o melhor cipó para amarras e até fez questão de me mostrar as melhores
frutas da selva assim como plantas medicinais. Eu gostava das histórias que ele
contava de sua tribo. Foram dezenas delas nas noites com lua ou sem lua. Para
um índio que pouco falava, ele adorava contar histórias. A lenda da Piripirioca foi a ultima que me
contou. Tivemos que dar adeus um ao outro depois que me casei e vida me levou
para outros lugares nunca imaginados. Ele se serviu de mais alguns goles do meu
café na chaleira e me contou como se fosse uma lenda a história da Piripirioca.
No seu estilo puro de índio brasileiro,
cruzou as pernas, respirou o ar puro da floresta e começou: - Vado Escoteiro a tribo Manau vivia num lugar muito bonito desta
floresta. Esta tribo era conhecida pela beleza das mulheres indígenas. Um dia
um índio estranho estava pescando no lago próximo. Era Piripari que pescava
pirás. Quando o bando de cunhãs (mulheres) da tribo Manau o avistou, elas se aproximaram
para tentar conhecê-lo melhor. Uma delas falou: - “De que terra vens moço
bonito? Tu és lindo feito o amanhã.” - Piripari não as olhou, mas uma das
índias botou a mão no seu ombro. Mal a mão tocou o moço, ficou toda perfumada.
As cunhãs ficaram maravilhadas.
- “Moço, conta para nós qual
é o teu segredo. Se não contares, o levaremos preso para nossa taba.” Mas, ele
apenas gritou: “Meu nome é Piripari!” Ao gritar, ele pulou rapidamente no rio,
e na linha de pescar levava três cunhãs. As outras moças pediam para ele não ir
embora. “Piripari, não vás, somos amigas e te queremos bem.” Elas esperaram por
muito tempo que ele voltasse. Sentaram-se na praia e esperaram longamente pelo
moço. No entanto, Piripari não voltou. Apenas o seu cheiro ficou no vento, um
cheiro embriagador que envolvia toda a floresta. Lá longe, Piripari libertou as
moças presas à linha de pesca. Ele disse a elas: “Não queiram pensar no meu
amor. Ainda não é meu tempo de amar, não me esperem mais, cunhãs.”.
- Apaixonadas, porém, as cunhãs
permaneceram inconsoláveis na espera. Depois de muito tempo, vendo a tristeza
das cunhãs, apareceu na tribo um jovem feiticeiro chamado Supi. Querendo ajudar
as moças, ele disse: - “Se o cabelo de vocês tocarem Piripari, ele ficará
preso”. Quando a lua cheia vier, vão até a praia onde ele costuma ficar e cada
uma leve na mão um fio de cabelo para amarrá-lo. ’ - No dia marcado, as cunhãs
foram para o rio. Ela viram Supi que estava pescando. Supi puxava a linha e tirou
um peixe. Ele enterrou o peixe na areia. A lua subia bem alto. Elas viram que o
peixe virava Piripiri. As cunhãs, devagarinho, com os fios de seus cabelos
amarraram Piripari. Elas vibravam de contentes.
- Enquanto elas o amarravam ele
olhava para o céu e cantava uma linda cantiga, mas ele não se mexia. Elas se
queixaram a Supi: “Nós o prendemos, mas ele nem se deu conta.”- O feiticeiro
tratou de tranquilizá-las: - “Enquanto ele está cantando a alma dele passeia
pelo céu, entre as estrelas. Não toquem no corpo dele, do contrário ele
desperta e a alma ficará no céu. Logo que ele despertar, podem levá-lo para
casa.” - No entanto, Piripari demorava a acordar. As cunhãs começaram a perder
a paciência e diziam: - “Acorda Piripari”. ’ - Puraê, uma das cunhãs, chegou a
tocar no ombro num gesto muito impaciente.
- Neste momento, Piripari se
calou e a lua tornou-se escura. Soprou um vento frio e as cunhãs caíram em sono
profundo. Quando elas acordaram, no mesmo local onde haviam deixado o corpo de
Piripari estava uma pequena planta, uma plantinha apenas, mas de um perfume
encantador. Neste instante, Supi se aproximou: - “Me escutem, cunhãs Manaus.
Quem quiser cheiro de encanto, use no banho esta planta que desde hoje passará
a se chamar Piripirioca, a planta que nasceu de piripiri.” E Puraê, a cunhã
mais desobediente, de castigo, caiu nos braços de um sapo cururu gigante. - As
outras cunhãs, entristecidas, voltaram para a taba. Nunca mais Piripari foi
visto à beira do rio ou cantando uma cantiga. Até hoje as caboclas da Amazônia
usam a planta cheirosa para conquistar outros moços.
Nunca mais voltei às terras
de Kaiowa. Nunca mais pesquei e acampei no rio Tibiriçá. O tempo se encarrega
às vezes nos afastar daqueles que amamos. Não sei se Kaiowa ainda vive, sei que
ele mora para sempre em meu coração e suas histórias ficaram marcadas em minha
mente por toda a vida.
Nota
de rodapé: - "Procure conhecer-se, por si próprio. Não permita que outros
façam seu caminho por você. É sua estrada, e somente sua. Outros podem andar ao
seu lado, mas ninguém pode andar por você." - (Art. 3° do Código de Ética
do Índio Norte-Americano).
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