quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

“Corisco”


Lendas Escoteiras.
“Corisco”

            - “Filho”, o Corisco agora é seu! – Quase pulei no pescoço de papai de tanta alegria. Amava Corisco, ele era meu único amigo no sítio onde morávamos. Conversava com ele e muitas vezes me levou para as reuniões de minha Tropa escoteira na cidade. Não era longe, menos de cinco quilômetros – Mas você sabe, disse papai, Corisco já tem mais de 30 anos. Não vai viver muito. Portanto não force quando montá-lo. – Naquela noite pedi para Deus que não o levasse tão cedo. Depois rezei para minha mãe que jazia na cama sem poder andar. Conversava sorria me animava, mas não fazia mais nada. Eu era o homem da casa com meus doze anos. Tornei-me cozinheiro, lavava, passava fazia de tudo e Dona Rita uma vizinha vinha uma vez por semana para ajudar. Papai quando chegava da lida dava banho nela, e ficavam horas conversando. Um amor de verdade!

                Nós tínhamos uma roça de milho, de feijão e outra de arroz. Dava para o sustento e meu pai aceitava convites para trabalhar nas fazendas próximas. Era um ótimo vaqueiro e tirava de letra qualquer tipo de plantação. Naquele sábado me aprontei para ir à reunião de minha patrulha e de minha tropa. Todos os sábados papai sempre chegava antes do meio dia e eu almoçava e saia a pé. Agora com corisco mesmo não correndo seria mais rápido. Passei a semana sonhando com meu Cordão Dourado que iria receber naquele dia. Até imaginava na ferradura todos com a palma escoteira e a patrulha dando o nosso grito. Deu uma hora e papai não chegou. Fiquei preocupado. Nunca deixaria minha mãe sozinha. Se ela soubesse iria insistir para eu ir.

                   Pela manhã passei meu uniforme, limpei meu chapéu, poli minha fivela do cinto e engraxei meus sapatos pretos. Minha mãe levou um tombo na escada de nossa casa e ficou com a coluna fora do lugar. Médicos sempre dizendo que se operar ela voltaria ao normal. Papai a levou a capital, mas nenhum médico deu esperança. Um se ofereceu por alta quantia que seria impossível conseguir. Já haviam se passado um ano e quatro meses. Mamãe nunca reclamou. Sempre disposta na cadeira de rodas e fazia tudo que podia fazer. Eu sabia que naquele mês época da colheita papai iria colher um belo campo de arroz de feijão e as aboboras na beira do rio deram como nunca. A fartura chegou. Eu sabia que papai ia vender parte para ajuntar e levar minha mãe de novo ao especialista. Ele nunca desistia.

                   Nos meus treze anos sabia fazer de tudo. Fazia as refeições diárias, lavava e passava e nunca deixei a casa sem limpar. Durante a semana deixava a escola correndo para chegar antes de minha mãe ir para a cozinha. Papai insistia para ela não se esforçar. Nunca esqueci o dia que minha mãe caiu e desmaiou. Sozinha em casa só cheguei da escola duas horas depois. Caia uma chuvinha fina e a terra molhada ela nada podia fazer. Comecei a ficar preocupado. Quase duas horas quando vi papai apear do cavalo e me pedir desculpas. Sorri para ele. Era duas horas e a reunião iniciava às duas e meia. Dei nele um beijo no rosto, fui até o quarto e despedi da minha mãe. Montei em Corisco a principio sem correr. Falei para ele baixinho se aguentaria um pequeno galope. Dito e feito, na curva do redemoinho ele parou e ficou de joelhos nas quatro patas. Já tinha visto isto antes com umas vacas do Seu Nolasco. Sempre morriam depois.

                   Chorando sai correndo até a sede escoteira. A reunião já havia se iniciado. Contei tudo para o Chefe Jofre o que aconteceu. Ele bondosamente me disse para não desesperar. Para tudo tem uma solução. Chamou os monitores pedindo para pegarem no almoxarifado cordas, facões e forquilhas das barracas. Levou também uma lona de caminhão que quase não era usada. A principio não entendi por que. Saímos todos juntos até onde estava Corisco. Ele não perdeu tempo. Logo as patrulhas cortaram troncos de árvores pequenas e começaram a montar dois suportes que iria levantar o Corisco acima do chão. Depois ele iria se apoiar de leve até se firmar. Disse o Chefe que ele teria de ficar ali por dois dias e eu devia trazer capim e agua para ele. Um Escoteiro foi avisar papai. Quando ele chegou através de roldanas com as cordas Corisco já estava em pé. Papai me abraçou e disse que tudo daria certo. Ah! Papai, como você não existe.

                     Muitos escoteiros se ofereceram a ficar comigo até na segunda. Trouxeram barracas e me ajudaram muito. No segundo dia vi que Corisco queria se apoiar. Soltamo-lo aos poucos usando a corda da roldana. Ele se firmou e até relinchou, pois a posição que estava era desagradável. Soltamo-lo das amarras e fui devagar com ele para nosso sítio. Deixei-o em um piquete bem abastecido de capim braquiária. Um mês depois ele já pastava em outros piquetes. Nunca mais o montei, mas saiamos muito para passear. Eu sabia que um dia ele iria partir, mas sabia também que faria tudo por ele sobreviver as suas dificuldades de velhice. O escotismo me mostrou um novo caminho. O caminho da amizade do um por todos e todos por um. Nunca esqueci o Chefe Jofre que fez questão de me entregar meu Cordão ali mesmo onde tomávamos conta de Corisco.


                   Mamãe nunca voltou a andar. Papai nunca a deixou só. Eu era suas pernas e aquele faz tudo que um bom Escoteiro sempre é. Corisco dois anos depois morreu. O encontrei na Piquete Sul, mas agora deitado. Ali mesmo o enterramos. A Tropa fez questão de comparecer. Quando desceu para seu túmulo recebeu uma bela palma escoteira e um bravôo. Fui Escoteiro por muitos anos. Hoje estou na faculdade da capital. Fiz questão de escolher ser um Veterinário. Aprendi a amar os animais e serei por eles um eterno guardião. Todos os feriados prolongados e nas minhas férias vou correndo para meu lar no sítio que tanto amo. Aqui trabalho em uma farmácia e tenho grandes amigos. O escotismo agora é difícil, mas ao voltar para onde morei nunca deixei de visitar o Grupo Escoteiro onde sempre sou bem recebido.

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