segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A dor de uma saudade.


Lendas Escoteiras.
A dor de uma saudade.

                  Eu me ofereci para levá-lo. Era apenas um encontro de velhos escoteiros em um lugar qualquer da minha cidade. Não me inscrevi para ir e só fui fazer a inscrição depois que soube que ele queria ir. Foi Donana quem me telefonou. – Chefe, a família está aflita, ele não tem condições. Há dias acamado e parece que não deram muita esperança de vida. Ninguem sabe quem disse para ele do Encontro dos Antigos Escoteiros em um Fogo de Conselho dos seus amigos do passado. Não são tantos assim, mas ele não para de dizer que vai. Não arreda o pé! – Eu não o conhecia, nunca o vi pessoalmente, alguns chefes me falaram sobre ele. Diziam que quando mais jovem era uma pessoa maçante, insistente nos seus ideais, sempre a dizer que seu tempo era o melhor e que hoje somos sombra do passado.

                 Eu tinha meus problemas. Por sinal muitos que não seriam de fácil solução. Meu emprego perigava, poderia a qualquer momento ser demitido. Linalda minha esposa sempre dizendo que tinha de ir devagar. – Jove, temos dois filhos já crescidos e precisam de você e de mim. Você gasta muito nos escoteiros. Quem não pode pagar você paga, nunca deixou ninguém para trás. Sempre foi daqueles que diz que ou vão todos ou não vão ninguém. E se você ficar desempregado? – Ela tinha razão, agora tinha um salário razoável, mas até quando? – Era difícil parar, sempre fui Escoteiro desde os seis anos. Amo de montão esta filosofia que me encanta, não iria parar. Se Deus quisesse que eu fosse um desempregado não iria retrucar. Mas do escotismo não iria abrir mão.

                  Donana me telefonou à tarde. – Jove, estou com um problemão. Você não conhece o Chefe Polar. Nem sei se este é seu nome. Já está chegando aos 95 anos. Dizem que conheceu Baden-Powell e eu não duvido. Foi Chefe no Montezuma e só saiu de lá quando o Conselho de Chefes achou que estava na hora dele partir. Diziam que era impertinente maçante e até de irritante o chamaram várias vezes. Comentam que ele chegou em casa chorando, e mesmo Isabel sua esposa tentando consolar ele passou um semana enfastiado, olhos cheios de lágrimas e caiu prostrado em uma cama e não levantou mais. Disseram até que ele queria tirar sua vida. – Olha ele já estava com 81 anos e no grupo dizem era um Pé no Saco! Ninguém estava aguentando mais.

               Fiquei pensando se quando envelhecesse eu seria assim também. Liguei para sua esposa me prontificando em levá-lo. Ela chorava e eu apiedado não sabia o que dizer. – Chefe, Polar quase não anda. Tosse o tempo todo. Sempre com remédios a cada hora do dia. O médico recomendou repouso absoluto, mas ele não obedece. Diz que vai de qualquer jeito e ninguém vai impedir. Não sei por que Joviano o convidou. Ele devia saber que Polar não tinha condições. – E os filhos porque não o levam e ficam junto? – Ela ficou calada por instantes. – Chefe, meus filhos nunca foram bons escoteiros. Só ficaram enquanto ele praticamente obrigou. Hoje não veem com bons olhos o escotismo. Chefe não sei se seria uma boa ideia.

               Combinei com ela que passaria por volta das sete da noite. Eu o levaria com prazer. - Afinal um dia serei como ele senhora. Todos nós que amamos o escotismo um dia seremos velhos, idosos, velhos lobos, ou seja, lá o que nos vão chamar. Se vai ser seu último porque lhe tirar a chance de recordar? Liguei para Fagundes um Velho Escoteiro para saber melhor sobre Polar. – Chefe, um grande homem. Deu sua vida pelo escotismo. Nunca bajulou ninguém. Sempre foi honesto com sua escolha e dizia o que pensava sem esconder. Não quiseram entregar para ele o lenço. Diziam que ele não tinha espírito Escoteiro. Nunca aceitou pagar por uma medalha por isto não tem nenhuma. Gritava e ainda grita aos quatro ventos que seu escotismo é o de raiz, o de Baden-Powell!

               Vesti meu uniforme devagar. Sabia que iria levar alguém que merecia meu respeito e minha admiração. Sempre fui do lado dos humildes, dos que se comprazem em não mudar de rumo ou direção. Quando amarrei o cadarço do sapato preto, vistoriei de novo o friso do meião. Olhei pela última vez no espelho se meu lenço estava como sempre fiz. Perfeito. Sem dobras, sem sobras. Coloquei meu chapéu devagar. Não coloquei as duas medalhas que me deram. Um de bronze de bons serviços e outra de gratidão também bronze. Quarenta anos fazendo escotismo e disseram que eu ainda precisava mostrar como servir a União dos Escoteiros do Brasil com bons serviços prestados. Hoje penso que não devia ter pagado por elas. Era meu direito como Escoteiro. Despedi com um beijo afetuoso em Linalda entrei no meu fusca e parti. Não tinha pressa. Tinha tempo, muito tempo.


               Na esquina da Sete de Setembro com a Saúva uma ambulância passou nos gritantes rumo ao centro da cidade. Meu coração acelerou. Entrei na Rua Peçanha. Na porta da casa de Polar um mundão de gente. Desci Dona Isabel sua esposa me olhou e disse: - Chefe, não precisa mais. Polar partiu, nunca mais vai voltar. – Ela chorava a perda de alguém com quem viveu uma vida. A abracei carinhosamente. – Para onde foi? O Grande Acampamento do Universo? Não sei se ouve o Fogo do Conselho dos velhos. Nunca perguntei. Voltei para casa chorando. Nunca vi Polar, não o conhecia e nunca apertei sua mão. Nem sei como era, mas eu o tenho no coração. Ali ele vai viver para sempre como se fosse meu guia, meu Chefe, e meu irmão! 

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