quinta-feira, 2 de junho de 2016

O Cacique Itagiba, aquele que tem o braço forte como pedra.



Lendas Escoteiras.
O Cacique Itagiba, aquele que tem o braço forte como pedra.

              Acordei cedo. Uma rotina de um Cabo Corneteiro na 4ª Brigada de Infantaria em Juiz de Fora. Um soldado me avisou que o Capitão Barbosinha queria falar comigo. Ordens superiores não se discutem. Apresentei-me a ele em sua sala as sete da manhã. – Cabo, recebi este telegrama. Entregou-me e li. Dizia: – “Meu irmão em breve irei passar para o outro lado do oceano. Não quero ir antes de me despedir de você”. – Cabo o que significa passar para o outro lado do oceano? – Capitão, significa que meu amigo o Cacique Itagiba está morrendo e não quer ir antes de despedir de mim – Os índios Botocudos quando estão para passar para o outro lado se preocupam com suas três almas na hora da morte. Segundo seus ancestrais, eles têm três almas: a nhe’enguê ou nhe’em, a alma boa espiritual, que vai para o Além quando a pessoa morre, não afetando os vivos; a anguêry, a alma animal, responsável pelas más inclinações e que fica na terra por um tempo depois da morte, assombrando os vivos; a avyu-kuê, a sombra, uma cópia imperfeita da pessoa, permanecendo nos ares e não incomodando ninguém. A doença é a ausência temporária da nhe’em, da alma boa. A morte é a saída definitiva dessa alma. O sonho é a saída nhe’em para esse outro mundo.

                O Capitão Barbosinha sorriu. Ele me conhecia. Sabia da minha lealdade e das minhas aventuras escoteiras. – Tem uma semana para ir e voltar. Às nove da manhã consegui uma carona em um Posto Shell. Tive sorte. Um caminhoneiro ia para Teófilo Otoni se prontificou a me levar. Estava com o uniforme de campanha do exército. Às onze da noite estava em casa. Contei aos meus pais o que aconteceu. Um banho, vesti meu uniforme e parti para a estação ferroviária. Duas da manhã e o Nonô Chefe da Estação me disse – Vado, as três e meia passa um trem de carga para Aimorés. Você pode pegar uma carona. Não deu outra. Tanta sorte e o melhor Dedé Peito de Pato era o maquinista. Fora Escoteiro sênior e pioneiro. Cheguei a Crenaque as cinco da matina. O dia clareava. Não consegui um barco para atravessar o Rio Doce.

               Fazer uma jangada demoraria demais. O rio estava calmo e as águas baixas. Escolhi um local onde havia uma grande pedra no meio do rio. Cada braça uns 80 metros. Tirei o uniforme e enrolei em esfoladas de bananeira minha tralha e amarrei as costas. Iria atravessar a nado. Não foi difícil. Às oito da manhã avistei no alto do morro do Grilo a Aldeia dos Pataxós, remanescentes dos Botocudos e Aimorés. Nada mudou. A mesma aldeia miserável do passado. Os índios ali não tinham vez. A FUNAI nunca ajudou. Parei para descansar, não queria chegar com ar de cansado. Precisava motivar meu amigo o Cacique Itagiba. Eu sempre disse que o sorriso é um remédio dos deuses. Meus pensamentos voltaram ao passado, cinco anos antes. Era Escoteiro passando para Sênior. Nos Pintassilgos me sentia bem. A maioria fora Escoteiro e muitos eu conhecia muito bem.

                A Tropa muitas vezes pensou em visitar os índios do vale do Rio Doce. Sabíamos que de uma população de mais de cem mil índios, hoje não eram mais que uns três mil. Havia quatro aldeias no vale do Rio Doce. Em Crenaque, em Conselheiro Pena, em Aimorés e a última em Colatina. – Porque não vamos visitar a de Crenaque? É perto e poderemos conhecer mais a história deles. Todos aprovaram. O Chefe deu sinal verde. Uma época que os chefes confiavam. Em uma sexta a tarde na estação ferroviária pegamos o Trem Rápido para Vitória. Não pagávamos passagem. Tínhamos passe livre na ferrovia Vale do Rio Doce. Às seis da tarde chegamos a Crenaque. Chegar à Aldeia a noite? Não era uma boa ideia, mas poderíamos atravessar o rio. Um menino de uns doze anos se ofereceu com a canoa de seu pai. Juntamos uns tostões e demos a ele quase doze reais em dinheiro de hoje.

                   No alto do morro do Grilo avistamos a aldeia. Nenhuma iluminação. Algumas lamparinas e mais nada. Casas de alvenaria. – Mas eles não deveriam ter Ocas? Eu iria averiguar. – Armamos duas barracas e dormimos como sempre. Sem medo e sem receios vivendo somente nossos sonhos de jovens escoteiros seniores. Acordamos com o sol nascendo. Na frente da barraca uma dezena de índios na maioria jovens como nós. Eles sorriam. Nenhum fazendo gestos de maldade. Levantamos acampamento e metido a entendido disse um bom dia no idioma tupi-guarani. Eles riram a valer. Foi então que um jovem forte e atlético, vestindo um calção azul e sem camisa nos convidou para visitar a aldeia e conhecer seu pai o Cacique Upiara e sua mãe a índia Poranga. Foi a primeira vez que conheci o Cacique Itagiba. Entramos na aldeia e todos sorriram ao nos ver. O Cacique Upiara muito educado. Com seu pequeno cocar de duas penas ele se orgulhava, uma de um Azulão Vermelho e outra do Uirapuru. Só os valentes da tribo conseguiam tais penas.

                        Ficamos lá até domingo. Conversamos muito com eles e apesar de não entender sobre FUNAI, indigenistas e piratas de bebidas alcoólicas aprendemos muito. Um povo sofrido. As terras que o governo lhes deram foram invadidas diversas vezes. A caça desapareceu. Eles plantavam mandioca e muitas vezes era seu único alimento. Os homens da FUNAI não eram honestos. Eles viviam como podiam, mas ainda tinham o orgulho dos seus antepassados. Entre os indígenas não há classes sociais e todos tem o mesmo direito e o mesmo tratamento. O pequeno pedaço de terra que ainda tinham pertencia a todos. Quem conseguisse alguma caça e ou uma boa pesca era dividido com todos. Cada casa morava oito ou doze famílias. Até mesmo o Cacique Upiara e sua esposa a índia Poranga moravam com mais oito famílias.

             Ficamos amigos. Muitas vezes fui só como se diz a “escoteira”. Juntos fizemos belas aventuras. Caçamos uma Jaguatirica só com armadilhas. Ficávamos horas na pedra do Açu junto ao rio Doce tentando pescar uns dourados. Fizemos uma jornada até a Lagoa dos Macacos muito longe da aldeia. Uma lagoa enorme e nunca tinha visto tantos peixes. Aprendi a gostar do Cacique Upiara e a Índia Poranga. Fiz amizade com o Pajé Jurecê. Quatro anos depois fui servir a Pátria em Juiz de Fora. Sempre mantendo contato com Itagiba pelo correio. Encontrei Itagiba deitado em um catre de folhas de bananeira. Ele já sabia que eu estava chegando, seus guerreiros avisaram. Levantou com dificuldade e ficou em pé com a ajuda de sua mulher a índia Ibotira. Abraçou-me fortemente com os olhos cheios de lágrimas. Não me contive e chorei também. Ficamos ali a falar do passado, e sua tristeza com o futuro da aldeia.


            Ele acreditava que poderia reencarnar. Um dia me disse – Sabe Vado Escoteiro quando eu reencarnar novamente quero ser seu irmão. Quero estar sempre ao seu lado. Morreu a noite sorrindo e olhando para mim. Voltei no dia seguinte do seu sepultamento para o quartel. Naquele sábado do retorno, na hora do apagar das luzes, toquei em meu clarim o toque de Silêncio mais triste que um dia toquei em minha vida. Para dizer a verdade as notas do clarim se misturaram ao sabor das minhas lágrimas que caiam harmoniosamente. Até mesmo o Sargento da Guarda me olhou assustado. Ele não conhecia a história, mas sua experiência com corneteiros sabia de antemão que uma bela história de amor e amizade tinha acontecido. Itagiba ficou na minha memória por todo o sempre. Eu sei que um dia vamos nos encontrar, pois nosso caminho nos levava ao mesmo lugar. Eu também iria morar um dia do outro lado do oceano.

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