Lendas
Escoteiras.
Jesus
de Nazaré, um Velho que pensou ser Escoteiro.
Era um asilo simples,
paredes descascadas, sem jardins, sem flores, quartos com três ou quatro camas,
um refeitório espremido, uma sala com uma TV colorida pequena, cadeiras simples
sem nenhum conforto para sentar. Na periferia, local não muito limpo onde o
lixo acumulava nas ruas próximas. Convidaram-me para ir conhecer Jesus de
Nazaré um Velho negro que não sabiam se fora Escoteiro, mas era um excelente
contador de histórias. Fiquei meio deslocado naquele ambiente desleixado e
pensei que ali os velhos não tinham bom tratamento no fim da sua vida. A
recepcionista com cara de poucos amigos relutou em me deixar entrar. Vendo-me
de uniforme Escoteiro abriu um precedente e me levou até um quarto onde mais
dois idosos dormiam ou estavam dopados com alguma substância que eu
desconhecia. Jesus de Nazaré estava acordado. Seu semblante ofuscante dizia
estar alegre e feliz.
Ao chegar à cabeceira de sua cama ele virou a
cabeça e me olhou. Confesso que foi um olhar comovente. Não era de piedade ou
de sentimento pelo tratamento com que ele recebia naquela casa. Jesus de Nazaré
parecia estar feliz. Balançou a cabeça e pude notar seus cabelos brancos e
crespos mal cortados, mas seu sorriso era contagiante. – Olá eu disse! – Ele
sussurrou um Sempre Alerta com um tom de voz que me tocou demais. – Escoteiro?
Dizem que são amantes da natureza. Que gostam da lua, das estrelas e dos ventos
que sopram nos baixios dos vales perdidos entre montanhas e picos mais altos. –
Olhei para ele enigmático, afinal descrevia nossa paixão e, portanto deveria
ter sido um de nós. – Ele piscou o olho e disse: - Não lembro se fui, pois
muitos são e não sabem que são. Meu Senhor da Fazenda onde morava nunca deixou.
Seu filho era. Eu conversava muito com ele e me contou as maravilhas de uma
vida escoteira, que dizia nunca mais esquecer.
Percebi logo suas qualidades
de Contador de Histórias. Em poucas palavras já prendia minha atenção. Eu sabia
que para ser um haveria de ter sensibilidade e empolgação, saber esticar sonhos
em forma de ponte para juntar o mundo da fantasia e do imaginário. Ele deu
outro sorriso. Parecia ler minha mente e eu não tinha a mínima ideia do que ele
pensava. Sabia que iria fazer 103 anos. Quem sabe um dos mais velhos que o
Brasil conheceu. Um biógrafo escreveu sobre ele, muitas das suas histórias, até
um livro foi editado, mas poucos tomaram conhecimento. Eu li seu livro, poderia
ser melhor se acaso o biógrafo assim o quisesse. Eu tinha que conhecê-lo. Ouvir
sua voz, quem sabe um conto qualquer. Afinal se eu me considerava um Contador
de Histórias não sei se tinha este dom como muitos amigos meus afirmavam. Sei
que eu tinha sensibilidade e poder de encantamento. Mas seria isto o primordial?
Sentei ao seu lado, me
apresentei. Ele com aquele sorriso que conquistava qualquer um me deu a mão
enrugada, uma delas com uma ferida pequena, mas bem tratada. Contou-me pedaços
da sua vida, e dizia entrementes que só conheceu alegrias e não tristeza. Lembrei-me
de um famoso contador de histórias que dizia que ser bom é ter conhecimento
antecipado do texto. Dos elementos que o compõe, das emoções escritas e
familiarizando com suas personagens. Seria isto mesmo? E aqueles que contavam as
histórias tiradas da imaginação? Não sabiam como seria o meio e o fim. – Ele me
olhava com olhar tão sutil e sincero que me entreguei a ele meu coração quando
começou a falar: - Nunca fui Escoteiro, nunca pude pegar a lua e guardar nos parcos
pertences que tenho. As estrelas que vocês contam eu nunca poderia contar, não
sei ler nem escrever. Mas tive a felicidade de respirar o ar da floresta, de sentir
no rosto a brisa da manhã. Dizem que era bom mateiro e com minhas mãos construí
cidades, fui amigo de cobras e animais que deram a felicidade de me mostrar que
são mais verdadeiros que os homens.
- Soube que vocês tem uma
lei. Tudo começou com Moisés e as suas taboas da lei. Até hoje são comentadas e
poucos levam a sério. Mas a de vocês é simples e direta. Ela não diz faça ela
diz tente para compreender. Afinal não é desejo de muitos ter uma só palavra? E
lealdade? Quem não fica contente quando se tem um amigo leal? São dez artigos
da lei, não? Ele continuou desfiando até que parou na promessa. Sabe o que mais
gosto de vocês? A promessa. Não diz que é obrigado diz que fazer o melhor
possivel é melhor que prometer. Estava estupefato. Como aquele Velho negro
Contador de Histórias. Sabia tanto de nós! Verdade é que palavras bonitas ditas
com sinceridade me emocionam. Sorrisos sinceros também me encantam, mas as
atitudes de um homem honesto me conquistam muito mais. – Ele me olhou novamente
e disse: - Vejo que você se assusta com o ambiente que estou. Não se preocupe.
As palavras ásperas que me dirigem não me magoam mais. As agressões não me
ferem e muitas maldades não mais me assustam. Ele sorriu e eu me senti pequeno
diante da sua grande verdade.
Sinceramente minhas
emoções estavam acima de minhas forças. Aquele Velho Contador de História
marcou em minha vida uma existência que desconhecia. Francamente eu não conhecia
sorrisos honestos, espontâneos e a aceitação da adversidade com um simples
estalar de um olhar. Ele se tornou para mim muito especial em muito pouco
tempo. Eu nunca pensei que pudesse me modificar e aceitar um local como aquele
para morar, mas agora via o Asilo como se fosse à redenção de um jardim do Èdem
que ele fazia questão de apregoar. Quando o olhava melhor respirava o ar das
montanhas em dia de sol. Quantos pensamentos e lembranças ele deixou em mim.
Fiquei calado, já não me sentia o Contador de Histórias que tantos me apregoavam
que eu era. Pensava em estar com ele sempre, pois só seu olhar me rejuvenescia.
Quando a enfermeira disse que o tempo acabou lhe dei um abraço. O beijei como
se fosse o meu pai. Dei-lhe a mão esquerda e me senti realizado.
Na porta do Asilo ela me disse: - Tem
pouco tempo de vida, vai partir em breve. Seu coração não vai aguentar outras
luas que irão nascer. – Chorei. Fui para casa rezando e pedindo a Deus que no
fim da minha vida me desse à força daquele Velho Contador de Historias. Fiquei pensativo
por dias e dias. Anos e anos escrevendo e pensando que eu era o melhor. Agora
sabia que meu jardim ainda precisa de muitas flores para sentir o perfume que
só os deuses sabem fazer. Agora tinha a certeza que para ser o melhor tinha de
ter um belo sorriso. Uma aceitação da realidade que para uns machuca e para
outros encanta. Não sei como explicar, mas para mim era como se estivesse
renascendo. Passei a respirar diferente, meu ar ficou mais puro, quem sabe
agora seria um Velho Escoteiro melhor? Nunca mais o esqueci. Na segunda visita
ele partiu. Queria ter estado lá para dizer adeus. Mas nunca esqueci seu rosto
de felicidade e me perguntava o que ele queria dizer quando me disse: - Entrou por uma perna de pato, saiu por uma
perna de pinto, quem quiser que conte cinco!
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