quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Duas vidas um destino.


Lendas Escoteiras.
Duas vidas um destino.

               Seus olhinhos miúdos procurava entender o que ele fazia ali. Olhava de um lado para outro tentando raciocinar porque não estava em sua casa. Agora era assim, lapsos de memoria frequentes. Sua idade? Ele não se lembrava, não tinha forças, não andava mais. Alguém o levava em uma cadeira de rodas simples e barata. Ele nem se lembrava de Loreta e para ele ela não existia. Ele sabia que era um ancião. Como as grandes árvores que ficaram no tempo ele não dava mais frutos e suas folhas caiam para ficar presas na terra. Vez ou outra tinha lampejos de lembranças. Lembrava seu nome, sua idade. Idade? 96 anos bem vividos. O que fazia ali? Muitos a sua volta. Batiam palmas ele se lembrou da palma escoteira. Quantas vezes ele também as usou? Há! Sim! Agora melhor. Lembrava que era um Escoteiro, sempre foi. Não participava mais há alguns anos. Quando lucido sentia falta. Falta da mochila, falta da trilha seca ou molhada. Falta da montanha, da barraca dos seus amigos de patrulha.

                 Deu de si o que pode e não pode pelo escotismo. Diziam que ele fora único. Um dos maiores Velhos Lobos ainda vivo. Era aplaudido onde quer que fosse. Os Grupos Escoteiros insistiam na sua presença nas festas e atividades que faziam. Ele sempre sorria, mas um sorriso sem graça sem saber por que estava sorrindo. Quem sabe pensava que estava feliz. Outras vezes seu olhar perscrutava a todos os presentes para ver se lembrava de alguém ou mesmo a perguntar o que fazia ali. Muitos disseram que era desumano o levarem assim nas veredas Escoteiras com que era convidado. Não era. Deixou um testamento e nele escreveu: Nunca direi adeus a quem amo, meu orgulho alimenta minha vontade em continuar lutando, errado achar que devo me aposentar, errado achar que não sei mais amar o escotismo como amei. Às vezes é preciso reconhecer que um dia o final irá acontecer e neste dia quero fechar os olhos e dizer: - Estou onde devia estar! Loreta entendeu a mensagem. Seus olhos sempre em lágrimas o levavam onde o convidavam. Ela sempre dizia a ele baixinho em seu ouvido: - Amor vamos escoteirar!

                       Quando estava lucido nunca reclamou. Afinal as dores nestas horas passavam, a falta de ar ia embora como se ele estivesse vivo em cima de uma enorme pedra no alto de uma montanha. Ele sempre gostou de estar com a meninada. Sempre os amou. Sempre pensou que iria poder ajudar a formar pessoas de bem para seu querido país. Quantas vezes ele viajou por estados e países a levar as boas novas de uma nova ordem? Um novo escotismo que poucos conheciam? Não era um perito palrador, ou melhor, um perfeito conferencista, mas se esforçava. Nos seus melhores dias ao terminar era aplaudido de pé. Nunca usufruiu das benesses do escotismo, pois gastou seu último tostão ajudando a quem dele precisava. Ouvia vozes de escotistas, dirigentes falando baixinho perto dele: - Um ancião merece respeito, não pelos seus cabelos brancos ou pela idade. Mas pelas tarefas e empenhos, trabalhos e suores do caminho já percorrido em sua vida. Seria isto mesmo? Então se era um ancião porque ainda pensava? Porque ainda dizia para si mesmo que queria escoteirar?

                 Loreta quando jovem tinha um belo sorriso. Hoje não mais. Prometeu a si mesma que iria dedicar sua vida ao Chefe Polaco. Nunca reclamou do casamento. Nunca reclamou das horas que ficou sozinha em casa esperando. Nunca reclamou de dar a ele tudo que pedia e até mais que isto, sorrir quando ele sorria chorar quando ele chorava. Uma mulher perfeita? O tempo não perdoa ninguém. Ele envelheceu e ela também. Viu que ele definhava e sabia que um dia ele iria partir. Ela nunca pediu a Deus para ir primeiro. Sabia que sua sina era cuidar dele. Adorava seu marido em todas as horas do dia e da noite. Admirava quando ele dormia um sono reparador e via que ele sempre sonhava, pois dormia sorrindo. Até aos setenta anos tinha uma saúde de ferro, mas as coisas começaram a mudar. Uma vantagem é que ele não reclamava. Tinha medo de reclamar e os médicos o proibissem de fazer o que gostava. Ser Escoteiro em todas as horas do dia e da noite.

                  Loreta sabia que o milagre não é dar vida ao corpo extinto, ou luz para quem quer ver, ou eloquência dos que querem falar. Ela sabia que não ia mudar a água pura em vinho. Sabia que muitos acreditavam nisso tudo, mas ela tinha os pés no chão. Quando o Doutor Esteves avisou a ela do seu câncer no útero não contou nada para ninguém. Chefe Polaco um dia caiu na escadinha da varanda da casa. Muitos pensaram que ele voltaria a andar novamente. Interessante que quase andou. Foi em um Grupo Escoteiro que foi visitar. Faziam questão da sua presença no aniversário do grupo. Ela com dificuldade o levou em seu carrinho. Lá ajudaram a transportar a cadeira de rodas até a ferradura onde todos os escoteiros lobos e chefes o esperavam. Ele sorriu e ela vendo isto sorriu também. Sentia uma dor terrível na virilha, mas não demonstrou. Na hora da bandeira todos firmes e quando o Chefe ia iniciar a cerimônia Chefe Polaco tentou ficar em pé. Todos olharam espantados. A bandeira recebeu ordem de subir aos céus. Chefe Polaco caiu ao chão desmaiado.

                Foi um corre-corre enorme. Mas o tempo não ajudava mais. Ela viu que o Chefe Polaco a cada dia mais definhava. Pedia a Deus que não a levasse, que desse a ela a chance de fazer tudo por ele até o fim dos seus dias. Cada dia Loreta quando sozinha gemia nos cantos da casa sempre rezando e pedindo a Deus para ficar até o fim ao lado do Chefe Polaco. Ela sorria ao lembrar-se dos meninos quando perguntavam ao seu amado quantas noites de acampamento ele tinha. Ele ria e dizia: - Quantas estrelas tem no céu? É só contar e saberão.  Ainda bem que Deus um dia me deixou viver nas barracas nas noites escuras e nos dias de luar. Mas o tempo não perdoa, Loreta acordou pela manhã e olhou o Chefe Polaco. Viu que ele não respirava. Quis chorar e não chorou. A dor que ela sentia do câncer avançado não a perdoou. Ele se ajoelhou aos pés do seu amado e agradeceu a Deus de lhe dar a oportunidade de partir com ele. À tarde Naninha a faxineira os encontrou abraços e sorrindo um para o outro. Ambos estavam mortos.


                    No fim de tudo tu hás de ver que as coisas mais leves não são únicas. Que o vento nunca conseguiria levar. Como cantava o Velho poeta um estribilho antigo, um carinho em um momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o cheiro gostoso que chegava com o vento soprando suave ao amanhecer. Chefe Polaco partiu com Loreta para uma estrela distante. Quem sabe ela junto dele voltou a sorrir quando moça bonita o conquistou. Quem sabe lá tem também escoteiros e o Chefe Polaco que tanto ama estes meninos pode estar junto deles a contar suas noites de acampamento como as estrelas no céu, o vento que derrubou a barraca, o lobo que comeu seu jantar. Dizem que as crianças são quase sempre felizes, porque não pensam na felicidade. Os velhos muitas vezes são infelizes, porque pensam demasiadamente nela...  

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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