terça-feira, 4 de agosto de 2015

“Flor do Campo”. Um sonho que não acabou.


Lendas Escoteiras.
“Flor do Campo”. Um sonho que não acabou.

                     Faz tempo, muito tempo! As lembranças ainda se mantem viva. Não dá para esquecer. Tudo aconteceu quando era Chefe de um Grupo Escoteiro. Um grupo simples, amigo, fraterno nem grande nem pequeno, mas onde todos sentiam a liberdade de estarem ali com suas alegrias e seus sonhos. Era um bairro simples, de classe media e muitas favelas já urbanizadas próximas.  Eu habitava este mundo escoteiro vivendo cada dia, cada hora, cada minuto de minha jornada Escoteira sem contagem regressiva. Eu sabia de cor o nome de todos os chefes, pioneiros, guias e seniores, escoteiros e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Sem contar muitos pais que foram e são até hoje meus amigos.

             Tudo aconteceu em um sábado sem sol, uma chuvinha fina e como sempre estava no pátio a observar a escoteirada, a lobada, pois cada reunião tinha alguma coisa para ver e guardar no meu livro de memórias. Era como se eu estivesse marcando o tempo em meu coração. Eu ainda não tinha notado a sua presença. Depois me disseram que vinha sempre. Ela não tinha mais que dez ou onze anos. Magrinha, vestida com simplicidade, sempre com a mesma roupa, um sorriso ingênuo e cativante, mostrava ser uma jovem que prezava sua humildade na apresentação pessoal. Cabelos castanhos compridos, com uma pequena trança pendendo para frente, escondendo um pouco de si própria. Seu semblante era de uma atenção cautelosa, a me olhar de soslaio, vi que não tirava os olhos da tropa das escoteiras.

                       Notei que seus sentidos eram os mesmos das meninas que ali brincavam, riam, cantavam e vi que ela de longe sonhava em ser uma delas como se estivesse em uma patrulha participando. Vi que sempre ficava confinada em um canto do pátio e nunca se aproximava. Em uma promessa de uma Escoteira vi seus olhos brilharem. Quando entreguei o lenço vi que ela chorava. Tinha certeza que em seus sonhos ela estava lá fazendo a promessa e sorrindo com aquele uniforme que admirava. Sentia sua força em se transformara em uma delas em pensamento. Para ela era um momento prodigioso que transpunha no seu imaginário, forçando entre o sonho e a realidade uma transferência física, como se estivesse ali com a mão direita em saudação e acreditando que de agora em diante sua vida seria outra. Uma ilusão.

                        Vi com surpresa sua expressão quando a chefe perguntou se ela poderia participar de um jogo. Das três patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais lógico para haver igualdade de competição. Acreditem, não tenho palavras para descrever sua alegria. Incrível! Nunca vi ninguém participar de um simples jogo com tanta energia e vibração. As outras escoteiras não observaram nada. Nem a chefe. Ao final do jogo um agradecimento e vi que ela conseguiu ficar mais próxima, ouvindo, tentando entender o que as patrulhas faziam, com cabos pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de papeis e desenhos misteriosos.

                     Um dia me aproximei. - Porque não ser uma delas? Eu perguntei. Ela não me respondeu. Seus olhos de novo encheram-se de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. No sábado seguinte de novo fiz a pergunta. Saiu correndo de novo. Pedi então a Chefe das Escoteiras que conversasse com ela. Foi então que fiquei sabendo de seu padrasto. Homem mau, não trabalhava e exigia tudo que sua mãe ganhava como faxineira para beber e gastar o único sustento da casa. Contou a Chefe que tentou falar com sua mãe e ele para participar e quando insistiu de novo levou uma sova. Contou que não chorava, nunca chorou. Era ponto de honra para ela. Não fora a primeira vez e nem seria a última. Sua mãe sabia como era, mas o medo fazia com que se mantivesse calada. Parecia historia da Cinderela sem sapatinhos de cristal e com um final triste sem o príncipe encantado. Nada podíamos fazer. É impossível o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos pais. Ela continuou a vir e assistir as reuniões.

                Um dia observei a porta da sede um homem dos seus 50 anos, meio grisalho, estatura mediana, semblante arrepiante uma cicatriz no queixo, vestido de maneira desleixada com um olhar nem um pouco amistoso. Dirigiu-se ao meu encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar armado. O nervosismo apareceu e mesmo tendo alguma experiência no assunto, não gostei da maneira com que ele se apresentava. Perguntou onde estava “Flor do Campo” e eu disse não saber quem era. Com o dedo em riste disse que ela queria ser escoteira, mas que ele nunca a deixaria entrar. – Vocês são uma turma de riquinhos. Agora ela fugiu de casa moço, e se até amanhã não aparecer o senhor é o culpado, falou cutucando o revolver na cintura. Fiquei sabendo depois que ela jogou uma chaleira de água fervendo em seu rosto quando ele tentou agarrá-la e saiu correndo.  - Olhe moço, ele continuou, ela fugiu de casa sem nada levar. Procurei por ela em todo o bairro e nada.

                      Fiquei calado, não era hora e nem adiantava retrucar. Os diretores e dois pais que permaneciam na sala estavam atemorizados e sobressaltados.  Claro que eu também estava espantado e assustado. Não era nenhum herói, de karatê e de luta livre não entendia nada. Pelo sim ou pelo não, ele saiu me ameaçando que se ela não aparecesse até o dia seguinte, alguém iria pagar caro com a vida. Durante dias fiquei pensativo sem saber como agir. No sábado seguinte, ainda preocupado, já que o padrasto de “Flor do campo” podia aparecer, tivemos uma bela surpresa. A mãe dela surgiu juntamente com ela e educadamente se apresentou. Chorando vez sim vez não, contou sua história, salpicada de novas informações. Ele era um bandido perigoso e fora morto na tentativa de um assalto a banco. Olhei para “Flor do Campo” cujo sorriso era contagiante. Acreditava que agora seu sonho em ser Escoteira seria real. De um padrasto violento via que seu mundo mudou para melhor.

                 “Flor do Campo” foi aceita. Nunca vi uma jovem como ela. Sua promessa foi inesquecível. Chorou de alegria como se estivesse vivendo um conto de fadas. Ficou conosco por 6 anos. Foi escoteira e guia. Conseguiu a primeira classe e como guia alcançou a eficiência II. Sempre era a primeira a chegar e a última a sair. Ela tinha orgulho do seu uniforme e todos que há conheciam tinham por ela uma grande afeição e ternura. Quando fez dezoito anos voltou para a terra onde tinha nascido. Sua mãe recebeu uma pequena herança de um sítio de sua avó. Na rodoviária nos despedimos com a Canção da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Flor do campo”.  Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na sede a visita dela. Desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos. Apresentou-nos a todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de lobinhos em um Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a todos.

                Havia ainda muitas jovens que eram de sua época. Uma grande confraternização e lembranças amigas. De vez em quando recebo uma cartinha e agora com o e-mail sempre solícita troca de conceitos e programas, pede sugestões, envia fotos e vai contando de uma maneira amável e jovial o dia a dia do seu Grupo Escoteiro. Ela mesma confirma que vai admiravelmente bem na trilha do sucesso. Eu um Velho Escoteiro tenho um grande orgulho em ser amigo dela. São coisas impossíveis que se tornam possíveis pela obstinação de um movimento incrível. Sempre digo que o escotismo é uma filosofia, uma maneira de sorrir e viver feliz para sempre!


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