quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O DIA QUE LEO MARCONDES RECEBEU SEU CRUZEIRO DO SL


O dia em que Leo Marcondes recebeu seu Cruzeiro do Sul
A suprema felicidade da vida é a convicção de ser amado por aquilo que você é; ou, mais corretamente, de ser amado apesar daquilo que você é.
Victor Hugo

                  Leo Marcondes estava sorrindo. O sorriso de um vencedor. Toda a Alcatéia sorria com ele. Lilian, a Bagheera, foi lhe dar um forte abraço. Sussurrou no seu ouvido – Leo estou orgulhosa de você! Eu sabia que você ia conseguir. Lembra-se do que lhe disse? Mas, olhe, foi seu esforço. Seu único esforço para agora ostentar o mais alto distintivo dos lobinhos. Rosaldo, o Baloo, também foi lhe dar um abraço. Sorriu. – Parabéns, Leo Marcondes! Seu desafio foi vencido. Ainda terão outros na vida, mas, um, você lutou e conseguiu.

                 Foi um sábado de festa na alcateia. Não era uma conquista comum. Todos sabiam disso. Lembravam-se quando, há três anos, Leo Marcondes adentrou na alcateia. Ninguém acreditava que ia dar certo. Não foram contra, nada disso, mas acharam que o grupo escoteiro não estava preparado. O assunto foi levado ao Conselho de Chefes e a discussão entrou noite adentro. Finalmente aprovaram a entrada de Leo Marcondes. Ufa! Ainda bem. Ele e os chefes de lobinhos provaram que o escotismo pode resolver e pode dar uma nova formação a jovens como Leo Marcondes.

                Mas, afinal, o que Leo Marcondes tinha de especial? Ele era portador da Síndrome de Down. Dona Etelvina, sua mãe, uma pobre faxineira que nada entendia disso, assustou-se quando os médicos lhe disseram quando Leo Marcondes nasceu. Tentaram explicar-lhe o que ela deveria fazer para criar Leo Marcondes. Mas ela olhava e balançava a cabeça. Não entendia nada. As palavras dos médicos só a confundiram. Dona Etelvina ficou grávida do seu antigo patrão que não quis assumir nada.

                Ela nunca casou. Seu patrão mandou-a embora e ela não se intimidou. Conseguiu que uma creche tomasse conta de Leo enquanto trabalhava. Mas lá ninguém se preocupou com Leo. Um dia apareceu uma assistente social e achou um absurdo Leo ficar misturado com outras crianças que não tinham nada a ver com ele. Foi preciso muito choro e pedidos chorosos para ele continuar. Dona Etelvina conhecia um vereador que a ajudou. E assim o tempo passou.

                Quando ele fez sete anos, não havia uma escola para matriculá-lo. Todos diziam a mesma coisa – Não estamos preparados. Arlete ficou sabendo através de uma amiga em cuja casa dona Etelvina fazia limpeza uma vez por semana. Arlete era a Akelá de uma alcateia de lobinhos e lobinhas. Arlete procurou conhecer o que era a Síndrome de Down. Não era um bicho de sete cabeças. Fora a aparência facial, o portador podia desenvolver quase todas as atividades normais de um menino comum.

                Claro, em alguns casos poderia haver um retardo mental leve ou moderado. Mas, dificilmente acontecia em que todos pudessem ter um retardo mental profundo. Arlete se informou junto a médicos que conhecia. Disseram a ela que as crianças portadoras encontravam-se em desvantagem em níveis variáveis face às crianças sem a síndrome. Ela não sabia se Leo Marcondes tinha alguma anomalia que poderia afetar seu sistema corporal.

               Estudou diversas características que somente um profissional na área poderia dar a ela a certeza de que Leo Marcondes poderia ser introduzido na alcatéia. Rindo vocês? Não. Arlete não era fantasiosa. Nunca foi. Leu muito sobre grupos escoteiros que se dedicavam a pessoas portadoras de deficiências especiais. Sempre achou um trabalho formidável. Ali deveriam existir os autênticos escotistas. Não devia ser um trabalho fácil. E agora Arlete pensava em levar Leo Marcondes para a alcateia.

                Muitos acharam uma ideia absurda. O que vão achar os outros lobinhos? Como ele fará para acompanhar o crescimento de todos na alcateia? Eram somente senões. Ninguém para dizer: – Ótima idéia! É sempre assim. Muitos só enxergam as dificuldades. Não foi preciso um fonoaudiólogo e um terapeuta para ver se a articulação e os sons de fala de Leo Marcondes prejudicavam sua maneira de ser. Quando o conheceu ela sentiu uma enorme amizade e admiração por ele.

              Lembrou que tinha lido sobre o preconceito e o senso de justiça com relação aos portadores da Síndrome de Down no passado. Mas será que isto não existia também no presente? Afinal ela sabia que muitos deles se desenvolveram muito bem na escola e deixá-los fora do convívio social era um verdadeiro absurdo. Lembrou também que em seus doze anos no escotismo, não viu quase ninguém portador de deficiência física. Por quê? Só em grupos especiais? Mas, quantos desses grupos seriam hoje e onde estariam localizados?

              Acreditou que seu grupo escoteiro seria o primeiro. Iria fazer tudo para que Leo Marcondes se desenvolvesse como os outros suas tarefas e habilidades. Sabia que seria uma situação nova para ele e que iria necessitar de muitas instruções verbais e visuais. Só assim ele iria consolidar seu conhecimento. Entendia perfeitamente que crianças com Síndrome de Down devem ser reconhecidas como são e não como gostaríamos que fossem. As diferenças deveriam ser vistas como ponto de partida e não de chegada na educação escoteira. Se necessário, seriam desenvolvidas estratégias e processos cognitivos adequados.

              Não teve mais dúvida. Convenceu a dona Etelvina de que seria muito bom para Leo Marcondes. Não só agora, mas para toda a sua formação, visando uma vida adulta como qualquer um dentro de nossa sociedade. Só não esperava as dificuldades encontradas em seu próprio grupo. Mesmo conversando com o Diretor Técnico, com diversos chefes e diretores eles só tinham dúvidas. Exceto seus auxiliares na alcateia, ninguém para lhe dar um “tapinha” nas costas e dizer – Parabéns, vá em frente! Conte comigo!

              Não foi fácil convencer toda a chefia do grupo. Finalmente, aceitaram com reservas. Ela sabia que o apoio de um estabelecimento de ensino, fosse público ou privado com programas de intervenção não existia na cidade. Sabia que a educação e experiência escolar ajudariam e muito a desenvolver em Leo Marcondes sua própria identidade, para além dos limites do lar. Sabia que seria difícil mesmo, Leo Marcondes não havia recebido nada disso.

            Arlete já tinha tomado sua decisão. Ela iria lutar para que os resultados fossem demonstrados aos professores dele que nada fizeram e principalmente a sua mãe, cujo sacrifício nunca teve limitações. Isso mesmo! Convenceu uma amiga diretora de um colégio que o admitisse. Era como ela, uma batalhadora.

                Conversou por muito tempo com Rosaldo e Lilian. Seus assistentes na alcateia. O apoio deles seria importante, pois sabia que o cuidado que deveriam ter com ele seria bem maior que com os demais lobos. Juntos, leram muito sobre tudo. Como poderiam ajudar a evoluir, a tornar-se independente e, claro, ser tratado da mesma forma que tratavam os lobinhos? Dona Etelvina teve medo. Convenceram-na de que Deus iria ajudar. E então planejaram e montaram seu programa. Agora era mãos a obra.

                Não foi fácil. Não foi mesmo. Leo Marcondes no primeiro dia ficou com medo de todos. Emburrado em um canto, não queria se enturmar. Lilian ficava com ele contando como era, sorria e ele nada. Fechado em si mesmo. Nas cinco primeiras reuniões quase chegaram a desistir. Sempre foi preciso que dona Etelvina estivesse junto. Se não ele chorava e emburrava. Mas a nossa sorte estava nas mãos de Mirtes. Sim. Uma lobinha. Alegre, espevitada, gritava, cantava e como fazia amigos! No segundo dia, ela foi até Leo Marcondes. Ele a olhou de soslaio.

               Na quarta e na quinta reunião, ele já acompanhava Mirtes. Na sexta, ele ficou por meia hora em sua matilha. Os chefes se abraçaram. Achavam que o caminho estava sendo aberto e, olhe, graças a ela, Mirtes. Quem diria! Na oitava reunião ele ficou o tempo integral. Até procurou o Baloo Rosaldo, dizendo que queria o uniforme. Rosaldo disse que o grupo escoteiro iria adquirir, mas ele teria que se esforçar mais nas etapas. Só assim poderia fazer a promessa e vestir o uniforme. Leo Marcondes não entendeu. Não queria saber disso – Quero o meu uniforme! Gritou.

              De novo pediram ajuda a Mirtes. Ela disse que iria ajudá-lo. Dizem que a suprema felicidade da vida é ter a convicção de que somos amados. Arlete sabia disso. Ela via desabrochar o amor de Leo Marcondes por Mirtes. Claro com o tempo este amor foi estendido a ela os seus assistentes. Quatro meses depois resolveram tomar sua promessa. Rosaldo ficava horas com ele tentando ensinar. Ele abaixava a cabeça e começava a cantar. Mas Rosaldo não desistiu. Um dia Mirtes falou que ele já sabia a Promessa do Lobinho.

              Foi uma festa. Nada de uniforme doado. O Diretor Técnico através dos fundos do grupo mandou fazer um uniforme novo para ele. Pensou em convidar todas as seções para assistir, mas isto não era rotina. As promessas eram feitas só pelas seções e convidados, a critério da chefia da alcateia. Mesmo assim, eles perguntaram a Leo Marcondes o que ele achava. Ele não entendeu muito bem e balançou a cabeça concordando. Perguntaram a Mirtes e ela sorriu dizendo que seria maravilhoso.

              Todo o grupo escoteiro estava presente. Mais de 120 membros. Ali, reunidos em uma grande ferradura para assistir a promessa de Leo Marcondes. Os chefes da alcateia ficaram com medo de que, na hora, Leo Marcondes mudasse de ideia. Chorar, sair correndo e preveniram a todos que se isso acontecesse tudo bem. Nada de espanto. Dona Etelvina não cabia em si de contente. Leo Marcondes foi convidado para dirigir o Cerimonial de Bandeira.  Nunca um lobinho havia dirigido.

                Leo Marcondes foi convidado para proferir a oração. Ele olhou para baixo e sua fala saiu baixa, quase inaudível – “Senhor, senhor, senhor, ajuda todo mundo!” Olhou para Mirtes e sorriu. Mirtes foi correndo abraçá-lo. Ficou sem graça depois que olhou para todos os presentes. Voltou para sua matilha. Arlete estava emocionada. Muito. Seus olhos cheios de lágrimas. Claro, Rosaldo e Lilian choravam mesmo. De soluços. Mas quem podia aguentar aquela emoção? E olhem, foi maior ainda a promessa.

               Arlete chamou o primo de sua matilha e pediu para ele apresentar o novo lobinho que iria fazer a promessa. Claro, era Mirtes. Um sorriso grandioso quando foi à frente junto com Leo Marcondes. Feita a apresentação e Arlete explicar a Leo Marcondes o que era a promessa ele a interrompeu. Ficou em posição de sentido e fez a meia saudação do lobinho dizendo: – Prometo, eu prometo, prometo mesmo, fazer o melhor, sim melhor, melhor e melhor, para cumprir deveres de Deus e a pátria. Já aprendi a lei do lobinho e garanto a todo mundo que vou fazer muitas boas ações!

               Incrível! Uma promessa dita à viva voz, à sua maneira, mas com todos os objetivos propostos! Leo Marcondes estava marcando para sempre todos os presentes. Uma salva de palma escoteira explodiu na ferradura. Leo Marcondes assustou-se. Arlete ficou preocupada. Mas, não. Leo Marcondes se abaixou e disse – Grato e grato e muito gratíssimo. Bem, depois disso foi uma festa, mesmo Arlete não querendo, os primos, monitores, chefes, seniores e porque não até eu corremos em sua direção, o levantamos no ar, bravoo e bravoo!

              Acho que foi o início da virada de Leo Marcondes. Sua mudança foi da água para o vinho. Se sua face não mostrasse quem era nada o diferia dos demais lobinhos. Sua participação em excursões e acantonamentos foi exemplar. Seu aprendizado não foi tão fácil, também não vamos querer tanto, mas, Leo Marcondes em um ano e meio conseguiu sua primeira estrela, daí foi um pulo para a segunda estrela. Mas estava difícil o Cruzeiro do Sul. Ele mesmo achou que ia passar para escoteiro sem conseguir.

             Não aceitava que os chefes da alcateia o ensinassem fora das reuniões, isso já acontecia regularmente. Ele mesmo dizia que era igual a todos. Mas a chefia da alcateia e os chefes sabiam que não. Mirtes de novo salvando a “pátria”. O preparou em tudo. O dia finalmente chegou. Leo Marcondes iria receber seu Cruzeiro do Sul. Não foi tão marcante como foi sua promessa, mas foi uma cerimônia que emocionou muita gente. Desta vez, era norma no grupo que a entrega de Cruzeiro do Sul, Liz de Ouro, Escoteiro da Pátria e Insígnia de BP fosse entregue com todo o grupo presente.

             Melhor ainda, o Comissário do Distrito estava presente para entregar a Insígnia da Madeira a Arlete, Lilian e Rosaldo. Seria uma grande festa. Fiquei triste. Não pude comparecer. No dia programado a minha empresa me mandou com certa urgência ver uma máquina de café que estava com defeito em uma cidade bem distante. Caramba! Que tristeza. Mas pedi ao meu amigo Lourival que filmasse. Quando assisti, meus olhos encheram-se de lágrimas. Leo Marcondes conseguiu. Leo Marcondes venceu. Claro, muitos o ajudaram, mas Leo Marcondes provou que podia ser um e mostrou ser um grande escoteiro.

               Vi o crescimento de Leo Marcondes na tropa. Não conseguiu o Liz de Ouro. Dependia de outros que não entenderam seu esforço. Mas não vale a pena criticá-los. Um dia irão ver que não se decide a vida de um jovem por um processo qualquer. Atrás daquelas páginas de um processo tem muito mais. Tem uma vida, tem um sacrifício, tem um sonho que pode ser quebrado por uma simples recusa. Mas não estamos aqui para isso, e sim para que todos saibam que Leo Marcondes jurou a si mesmo que iria conseguir o Escoteiro da Pátria!

               E Leo Marcondes conseguiu. Fiz questão de mandar por escrito ao distrito e à região. Queria que soubessem que não só aquela alcateia foi vencedora nos seus ideais, mas muitas outras também poderiam ser. Leo Marcondes foi único. Não digo que nasceu para vencer as dificuldades, mas ele sempre foi um vencedor. Soube valorizar a cada passo e aproveitou todas as oportunidades na vida. Um dia soube que ele estava fazendo carreira política. Não entendi bem.

              Disseram-me que se candidatou a vereador e foi eleito com boa margem de votos. Sua luta era em prol daqueles que diferente ele, não puderam ter a oportunidade que lhe deram. Insistiu tanto, que organizou um grupo escoteiro de crianças excepcionais. Não foi fácil. Voluntários já são difíceis, nessa área pior ainda. Conseguiu unir o Padre Geraldo e o Pastor Celso na mesma ideia. O Rotary Club e o Lions Club também deram seu apoio. O grupo tem dois anos. 45 participantes. Cinco chefes. Três moças e dois rapazes. Muitos pais dos jovens que lá estão dão sua colaboração.

               Soube que ele comprou uma boa casinha para sua mãe. Ainda estava solteiro, mas namorava. Dona Etelvina não precisava trabalhar mais. Nada faltava para ela. Leo Marcondes agora era o chefe da família.

              Não são minhas, mas de Aurino Cândido essas palavras – “Vencedor não é só aquele que vence a batalha e sim aquele que se levanta a cada derrota para lutar novamente. Tente sempre até que as ovelhas se tornem leões”. Meus parabéns, meu abraço, meu bravoo a Arlete, Lilian e Rosaldo. E claro, à menina Mirtes, pois, sem eles, nada disso teria acontecido. E essa história não poderia ser contada. Falar na Mirtes, por onde será que ela anda?

E quem quiser que conte outra.

Quando muitos te olharem com pena, desprezo, pensando que você nunca vai ser um vencedor, apenas sorria e conquiste o mundo, pois ele dá várias voltas.

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