sábado, 3 de dezembro de 2011

O SOL BRILHA PARA TODOS


O SOL BRILHA PARA TODOS

De tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a rir-se da honra, desanimar-se de justiça e ter vergonha de ser honesto”

Chamavam-me de Raoni. Mas meu nome mesmo era Anderson. Poderiam ter posto outro apelido, mas acharam que eu parecia com o tal Cacique com este nome. Não sei. Eu aceitava. Era uma maneira da patrulha dizer – Você é mais um de nós, somos do mesmo sangue, tu e eu! – Era assim os Javalis, minha patrulha do coração. Nem quero nem dizer como amava aquela patrulha.

Éramos muito unidos. Fora das reuniões, nos reuníamos sempre em meu bairro ou no bairro de algum deles. Íamos ao cinema, passeios, trabalhos escolares, sempre juntos. A família de cada um conhecia todos os outros. Nosso chefe admirava a união da patrulha e incentivava as outras a fazerem o mesmo. Dava-nos como exemplo em tudo, principalmente nos acampamentos, onde nosso campo sempre era o primeiro a ser montado. Sempre éramos o primeiro a dar o Grito de Almoço pronto e assim seguia durante todo o desenrolar do acampamento.

Foram vários. Consegui alcançar a marca de 25 noites de acampamento. Marca difícil de ser alcançada com a idade que tinha. Estava a caminho da primeira classe. Faltava somente a prova de jornada, que estava sendo preparada pelo chefe Ivan. Ele dizia que eu era novo ia fazer 13 anos. Mas me disseram que seria feita no mês seguinte. Já estava tudo esquematizado. Local conhecido e Tavinho iria comigo. Ele seria o seguinte na prova de jornada.  

Mas nem tudo era só alegria, distração, aprendizado. A vida nos traz situações que nos transformam em menos de pequenos segundos, minutos. De uma vida plena de alegria a um buraco negro que desconhecemos tudo pode acontecer. E aconteceu. Foi em uma tarde de domingo, estava em casa só com minha mãe e meu pai, quando adentraram a minha casa sem pedir licença, vários policiais em busca de meu pai.

Meu mundo caiu. Comecei a chorar. Minha mãe se desesperou. Gritava perguntando o que era aquilo, ninguém dizia nada. Arrastaram meu pai, espancavam-no sem cessar e o levaram até o camburão e em questão de minutos o levaram. Os vizinhos acorreram, tentaram nos ajudar. Mas ajudar em que? Alguém lembrou que conhecia um advogado. Não entendia nada. Porque meu Deus, porque levaram meu pai? Meu grande amigo. Sempre estava junto e sempre me apoiou em tudo. Era e sempre foi alem de pai, o meu melhor amigo.

No dia seguinte, ficamos sabendo da acusação. Ele tinha seduzido uma moça, maior de idade, e a teria matado a punhaladas em um matagal. Impossível! Impossível! Meu pai não. Nunca. Foi um desespero total. Éramos uma família simples. Meu pai trabalhava como gerente em uma loja de sapatos em um shopping. Tínhamos o necessário. Dificuldades haviam, mas quem não as tinha? Eu estudava em um Colégio Estadual, e minha mãe era dona de casa.

Nossos parentes moravam no norte do pais e dificilmente entravamos em contatos com eles. Não tínhamos condições de pagar um advogado. Minha mãe tentou um defensor público. Todo Grupo Escoteiro ficou em polvorosa. Conheciam o meu pai. O meu melhor amigo. Minha patrulha se solidarizou comigo. Vinham sempre me visitar. Eu passei a faltar às reuniões. Os olhares de filho de um assassino estavam presentes nos olhos de muitos. Aquilo me machucava profundamente. Doía e como doía.

No dia da morte da jovem, era dia de folga e meu pai tinha saído. Disse que iria ver um novo emprego do outro lado da cidade. Saiu cedo e só voltou à tarde. Não explicou onde foi e só usava metáforas. Minha mãe que o adorava começou a duvidar de sua inocência.  Ninguém acreditou nele. Todos os consideravam culpado. Haviam muitas provas. Eu não. Eu sabia que ele não faria isto. Não era assim, seu coração era nobre e nunca deixou de ajudar ninguém. Cometer um desatino não poderia cometer. Eu não acreditava.

Sua prisão preventiva foi decretava. Durante uma semana, a imprensa falada e escrita só tinham o crime dele em suas manchetes. A loja que meu pai trabalhava se recusou a qualquer indenização. Cancelaram nosso cartão de saúde. Ficamos numa situação desesperadora. De penúria mesmo. Nossa casa era própria, Graças a Deus. Mas não tínhamos nenhum ganho. No inicio tivemos a ajuda dos vizinhos. Mas aos poucos eles também se afastavam.

Não ia mais ao Grupo Escoteiro. Mas duas vezes ou mais por semana, recebia a visita dos javalis. Eles eram fieis. Meus melhores amigos. Iguais a eles difícil imaginar outros. Não sei talvez os únicos depois de meu pai. Eles insistiam para eu voltar. Pedi um tempo. Contaram do ultimo acampamento, da ultima excursão, das reuniões, e meus olhos ficavam marejados de lágrimas. Pedi a eles que não me contassem mais. Quem sabe seria melhor até que não viessem mais. Afinal estavam juntos do filho de um assassino. Mas não os javalis. Eles não. Eram fieis. Acreditavam em mim e em meu pai.

Minha mãe vendeu o carro do meu pai e comprou uma Kombi. Ela em um mês fez tudo para transformar em um carrinho de “cachorro quente” e outras guloseimas. Sua idéia era ficar no bairro, indo de rua em rua oferecendo seus quitutes. Agora precisava de mim para ajudar. Claro, isto para mim seria muito bom, pensei. Quem sabe esta angústia, aquela tristeza e a saudade tremenda que sentia do meu pai e do Grupo Escoteiro pudesse ser esquecida.

Depois da escola lá estava eu, junto a minha mãe, gritando pela rua, enquanto ela dirigia devagar. No principio mal deu para pagar a gasolina. Depois foi melhorando. Deu para colocar um som, fazer algumas adaptações. A procura aumentou tanto que minha mãe passou a atender por encomenda. Enquanto isto aos domingos íamos visitar meu pai na prisão.

Era de uma tristeza de dar dó. Cada dia mais definhava. Não era o meu pai que conhecia. Quando nos via, nos abraçava como se fosse à única coisa que valia a pena continuar vivendo. Conversamos banalidades. Ele nunca contava como era a prisão. Não tocava no assunto da morte da jovem. Ali, os três ficavam remoendo dores ocultas, tentando com palavras simples mostrar que nada tinha acontecido.

Um ano depois meu pai foi julgado. Condenaram-no há 25 anos. Chorei muito. A família da moça morta aplaudiu e gritava no fórum – assassino! – Assassino. Para uma criança de 13 anos ouvir aquilo, era como se estivessem arrancando seu coração. Saímos dali aos pedaços. Foram fatos gravados e que quando me vinham à mente eu chorava, soluçava, mas sempre escondido da minha mãe. Não queria fazê-la sofrer mais.

 Eu ainda estava ajudando minha mãe. Ela fazia seus quitutes, eu entregava. Cresci mais. Fiquei mais forte. Minha patrulha não deixava de me visitar. Só mesmo os Javalis. Incrível uma patrulha como ela. Não falavam do Grupo, dos programas. Atenderam-me. Mas a visita deles era sempre uma alegria nos meus domingos tristes e silenciosos.

As visitas a prisão continuavam. Meu pai, um esbelto homem no passado, não era agora mais que um fantasma, barba cheia, cabelos revoltos, magro, andava curvado e não tinha amigos ali. Sabia que não tinha mais em lugar nenhum. Sabíamos que iria morrer em pouco tempo. Mesmo tentando demovê-lo a se alimentar melhor ele sorria calmo como sempre foi.

 Melhoramos de vida um pouco graças ao trabalho de minha mãe. Dois anos se passaram, eu estava com 14 anos e já era um homem. Resolvia tudo em casa para minha mãe. Fazia as entregas das encomendas. Muitos de minha patrulha ainda continuavam a me visitar. Poderia ter voltado para o grupo, mas não voltei. Mesmo com o tempo que passou achei que não devia. Seria sempre o filho de um assassino.

Um dia, apareceu em nossa casa, uma senhora, simpática, vestindo simplesmente, com um jovem de 11 anos e se apresentou a minha mãe, dizendo ser aquela que meu pai tinha estado com ela no passado no dia do crime. Minha mãe não acreditou. Ela disse que antes que meu pai casasse, eles tiveram um caso, e disto tinha nascido um filho. A principio ela escondeu dele. Não tinha nenhum amor entre si, e ela não queria ter uma família com ele. Seus pais também nunca gostaram dele. Pediu que se afastasse dela, e se quisesse poderia visitar seu filho. Mas sempre seria o filho dela e não dele.

Quando o filho nasceu meu pai implorou para visitá-lo uma semana sim uma semana não. Ela concordou. Faziam isto escondido dos pais dela. Eles não iriam aceitar. Nunca tiveram mais nenhum caso. Encontravam-se sempre em um parque já conhecido dos dois. Quando soube do assassinato, não prestou atenção a data. Não disse nada. Achava que ele podia ser culpado. Ficamos embasbacados com aquela história. Ela disse que era evangélica, e não queria se envolver. Minha mãe não condenou. Foi até simpática com o seu filho o filho do meu pai e meu irmão.

Enquanto elas conversavam na sala, eu e o Miltinho fizemos amizade. Nunca pensei em ter um irmão e agora tinha um. Foi duas surpresas que mudaram minha vida. Meu pai era inocente, mas não tínhamos condições de provar. Quando o visitamos na cadeia perguntamos por que não contou. Ele nada disse. Chorava e chorava. Parecia uma criança.

Seis meses mais tarde, prenderam um homem que havia matado várias moças em matagais próximos. Confessou o crime que consideram fosse o meu pai o culpado. O delegado viu o erro cometido.  Mesmo assim demorou mais de cinco meses para o Juiz ordenar sua soltura. Quando ele chegou em casa, foi uma festa. Festa de poucos. Somente uns dois ou três vizinhos pingados. Os demais não quiseram vir, ficaram envergonhados.

Meu pai estava um “trapo” quando chegou a casa. Poucas notícias na imprensa. Agora não era mais manchete. A injustiça fora grande, mas ele nunca culpou ninguém. Nem foi ao seu ex-emprego reclamar alguma coisa. Ofereceram a ele entrar com uma petição para exigir do Estado uma indenização. Ele também não quis. A vida continua. Isto fez parte do meu crescimento dizia.

Miltinho estava presente com sua mãe quando meu pai adentrou a sala. Foi uma festa ele saber que aceitávamos Miltinho como um irmão. Meu pai não explicou até hoje porque não falou a verdade. No fundo eu sabia que não queria prejudicar a mãe de Miltinho. Também deveria ter medo de que se soubéssemos não confiaríamos mais nele. Não sei. Pode ser que sim ou não.

Meu pai, eu e minha mãe, aumentamos nossa produção. Ele agora é outro homem. Recuperou um pouco do que tinha sido em sua mocidade. Esta se fora para sempre. Mudamos para uma casa maior. Voltei para o Grupo Escoteiro com a cabeça erguida. Tinha um pai, um herói que admirava. E era Inocente. Todos precisavam saber disto. Sofrer como ele sofreu ser acusado de um crime que não cometeu e se sacrificar por alguém, acredito ser poucos pais que fariam isto. Fora ofendido, injustiçado, tratado como assassino. Poucos se aproximaram dele na prisão. Lá não fez amigos, era taciturno. Sua vida lhe pertencia, ali só a ele e mais ninguém. Disse-me que não queria saber o que fizeram. Não queria julgar. Tinham-no julgado e ele não faria o mesmo.

Meu irmão Miltinho também entrou para o Grupo Escoteiro.  Ele está com a corda toda. Só fala nisto. Todo fim de semana sua mãe o traz a nossa casa onde é muito bem recebida e ele é adorado pelo meu pai. Não tenho ciúmes. Agora somos uma família feliz. Deus soube conduzir nosso destino para que não descobríssemos a verdade quando fosse tarde de mais.

Eu e mais dois da patrulha Javali, estamos fazendo a rota sênior. Meu irmão pertence aos lobos, uma grande e antiga patrulha do grupo.  Não consegui minha primeira classe, mas vou lutar para ser Escoteiro da Pátria. Tenho certeza que vou conseguir. Amo o escotismo, a lei escoteira para mim é ponto de honra. Tenho a promessa no coração.

Não tenho mágoas de alguns chefes que não ficaram do meu lado. Cada um teve suas razões. Tenho certeza que onde estiverem terão se arrependido do julgamento precipitado. Lembro das palavras de Ivan Teorilang, que dizia “Ao julgar e condenar alguém, não se esqueça que você também poderá estar suscetível ao mesmo erro, haja visto sua condição humana, portanto, pense e pese antes de constranger seu semelhante”.

Hoje, o importante para mim é minha família, meu pai que se recupera das agruras que passou e não condena ninguém, do meu irmão, da minha fantástica mãe, e.... da minha patrulha sênior é claro. Os Tiradentes são como os Javalis. Unidos, sempre para frente. Não conhecem a derrota. Amo esta patrulha, adoro meu grupo, sou apaixonado pelo Movimento Escoteiro.

Ah, só mesmo o escotismo. Como te amo. Como você mudou minha vida. Você com toda sua sabedoria soube fazer de mim um homem. Com caráter, com honra. Não vou deixá-lo nunca. Irei ser um pioneiro, e depois serei um chefe. Sim um chefe para mostrar a todos os jovens que o caminho para o sucesso está aqui. E fazê-los sorrirem, ajudá-los e fazendo isto, como dizia Baden Powell eu também terei a minha felicidade.

E quem quiser que conte outra...

"A injustiça, senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo à semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade,
promove a venalidade [...] promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas."
(Rui Barbosa)

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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