segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O HERÓI QUE NÃO MORREU




O HERÓI QUE NÃO MORREU

“Papai Noel, você que não se atrasa,
Na visita anual que faz a terra
Vê se pode mandar voltar em minha casa
“O meu papai que foi brigar na guerra”

Tenho dificuldades de lembrar-me desta história. Passou-se no inicio da década de cinqüenta. Estava com 11 anos, e ao contar, pode haver lapsos de memória ou mesmo falta de sincronismo. Espero que me perdoem. Afinal tenho bloqueios de minha época de menino, e mesmo assim vou tentar ser bem fiel ao fato que ainda tenho dúvidas se aconteceu.

Tinha renovado minha promessa, pois fora lobinho por três anos e meio, e estava lutando para “tirar” minha segunda classe. Havia 10 meses que fizera a passagem. Não era fácil. Como muitos conseguiram eu também ia conseguir. Participava da patrulha Lobo. Um ótimo time e gostava de todos os meus amigos patrulheiros, alcunha bem conhecida na época.

Não me esqueço que naquela ocasião quem conseguisse a primeira classe e se fosse bem na prova de técnica e segurança da faca e machadinha (das pequenas) poderia usá-las no cinto. Via o orgulho do Monitor e do sub, alem do Nonô, que exibiam pelas ruas em seus cintos, a faca do lado direito e a machadinha encapada do lado esquerdo, na vinda e ida na sede. Sonhava em fazer o mesmo.

Mas não é esta a história. Ela não é sobre mim. Ela é do Tito. Um jovem moreno claro, cabelos pretos, olhar triste, calado e que se tornou um enigma para mim. Da precária lembrança recordo que Tito adentrou na patrulha 5 meses após minha chegada. Sua apresentação foi bem estranha. Não havia sorrisos em seu rosto. No grito da Patrulha ele nada dizia nem mesmo acompanhar com os lábios.

Em reuniões de Patrulha Tito não se manifestava. Várias vezes notei que ele estava em sintonia com alguém. Não sabia quem ou o que podia ser. Não ouvia vozes só sua maneira de olhar, balançar a cabeça como concordando. Tito era estranho. Estranho mesmo. Os outros não comentavam. Aceitavam Tito como ele era.

Um dia procurei o Chefe Jessé e comentei sobre o fato. Expliquei que não falei nada para a patrulha. Não queria criar um clima ruim de falta de confiança ou mesmo de fraternidade. Claro, tinha conversado com o monitor e ele me disse que nada observou.

O meu chefe de tropa era um “cara” legal. Disse que não me preocupasse. Cada um de nós temos os nossos problemas e agimos conforme fomos criados em nossa família. Disse também que poderia notar que irmãos sempre são diferentes e compete a cada um de nós aceitarmos como são.

Quando ia saindo o Chefe preocupado, me pedindo reserva, e não comentar-se com ninguém, que o pai de Tito, um Australiano, nos últimos meses da guerra, se alistou. Foi imediatamente enviado para frente de batalha, já em território alemão onde foi morto por uma granada que explodiu a sua frente.

Sua mãe já estava grávida de 8 meses quando ele partiu em 1943. Tito nasceu prematuro. Seus avôs resolveram não ficar na Austrália e vieram para o Brasil. Ele sabe o que aconteceu. Não esconderam nada.

Fiquei pensativo. Talvez na minha pequena cabecinha de jovem de 12 anos não pudesse raciocinar direito e entender como hoje entendo. Mas uma semana depois já tinha esquecido boa parte do que o chefe me contou.

Acredito que comecei a me preocupar e até a ficar com medo, em um acampamento de fim de semana que fizemos nas Corredeiras de São Mateus. Por duas vezes acampamos lá. Um lindo local. Bom arvoredo, e muitas plantações de coqueiros que o proprietário do terreno não tinha plantado e disse que podíamos usar a vontade.

Não imaginem grandes corredeiras. Nada mais que um pequeno riacho, que em época de seca, atravessávamos pulando pedras sem molhar os sapatos. Como tinha um belo descampado, com capim comum, armávamos as barracas sem dificuldade e dificilmente seriamos atingidos por uma enchente.

Estávamos só a patrulha. Empurrávamos com alegria a carrocinha pela estradinha de terra e vi ao longe uma enorme nuvem negra prenunciando chuva. Como dizia o meu Grande chefe Francisco Floriano de Paula, nuvens baixas cor de cobre, é temporal que se descobre. Se tem chuva e depois vento, fica em guarda e toma tento.

Ainda havia um bom caminho para percorrer. Resolvemos dar uma pequena corrida, pois o caminho era bom sem subida. Olhei em volta e não vi Lito. Estava bem atrás de cabeça baixa, balançando o corpo dizendo baixo, tudo bem! Tudo bem!

Veio correndo até nós e nos mandou parar. Paramos. Um raio de enorme proporções caiu a menos de 10 metros alem de nós na estrada. Derrubou uma árvore de bom tamanho. Se Lito não tivesse nos parado não sei o que aconteceria.

Quando contornamos a arvore caída, ele disse ao Monitor que não fosse para as Corredeiras de São Mateus. – Por quê? Disse o Monitor. - Fiquei sabendo que uma grande “Tromba d’água” iria cair dentro de poucas horas e vai inundar tudo! – disse.

Ficamos pasmados! Primeiro o raio agora a enchente. Afinal quem era Lito? Ele de cabeça baixa, não falou mais. Fomos até próximo as corredeiras e vimos do alto da estrada que nada havia. Nem chuva, nem Tromba d’água, nada. – Esperem, disse Lito, aguardem. Não demorou muito e um trovejar como se fosse um grande avião pousando mostrou uma enormidade de água vindo.

Subimos com a carrocinha uns 10 metros acima do morro e a água tomou conta de todo o vale. Se tivéssemos ido em frente, não sei o que seria de nós. Claro, a inundação teria levado todos. Olhamos para o Lito e ele de cabeça baixa nada mais falou.

Bem, não vou entrar em mais detalhes, pois assim como veio, a “Tromba d’água” se foi. Não sujou muito a grama e pudemos acampar com um pouco de tranqüilidade.

Outra vez foi quando viajamos de trem até uma cidade onde iríamos acampar com outra tropa amiga. Lito na estação começou a balançar a cabeça, os braços dizendo, tudo bem! Tudo bem! Sabia que dalí não viria boa coisa. Logo ele procurou o Chefe e disse que o trem iria se atrasar, pois tinha desencarrilhado o último vagão onde morreu o condutor.

O chefe foi até ao Chefe da Estação e este não sabia de nada, o trem já tinha partido da estação próxima e deveria adentrar pelos seus cálculos daí a 15 minutos. O tempo passou e nada. Duas horas depois foi enviado uma vagonete para saber o acontecido. Confirmou o que Lito tinha dito.

Agora sabíamos que Lito tinha alguma anormalidade. Naquela época não tínhamos idéia de nada. Ficamos é com medo de Lito. Mesmo assim fingíamos que ele era mais um patrulheiro e o tempo foi passado. Ele já tinha notado e mesmo assim continuava.

Estamos em um Acampamento nas férias de julho, onde ficamos por 7 dias. Sai só com um facão para tentar achar um galho se possível de goiabeira, pois pretendia fazer um arco e soube que ali conseguiria. Não pretendia ir longe. Só saiamos em dupla e disse ao Monitor que voltaria logo e mostrei aonde iria.

Ao subir uma pequena elevação avistei a minha frente, Lito, sentado próximo a um Jequitibá não muito grande e falando com alguém. Não vi ninguém. Fiquei ali a espreita e Lito parou de falar. Alguém me tocou nas costas e quando olhei Deus do céu! Um homem fardado, com uma aureola branca em volta da cabeça e disse para não ter medo.

Dizer para um menino de 12 anos não ter medo naquela hora era fora de propósito. Tremia e já ia correr quando ele disse que era o pai de Lito. Como? Pensei eu. O pai de Lito morreu na guerra. Ele leu meu pensamento e disse que sim, havia morrido, mas sua alma vinha sempre visitar Lito. Ele era parte dele. Precisava dele.

Não estava entendendo nada. Meus joelhos tremiam. Notei que minha calça estava molhada e pingando. Verdade. Não vou mentir. Fiz poucas e boas como escoteiro e sênior, mas naquela primeira vez eu era um grande medroso. O tal pai de Lito, sorriu (era bem simpático) e me disse que seu filho tinha uma grande amizade por mim. Ele contava comigo e eu não poderia decepcioná-lo.

Para mim tudo bem. Naquela hora concordava com tudo. Não vi mais a aparição. Lito estava ajoelhado e chorando. Chorava e chorava. Fui até ele e o peguei pelo braço. Ele se levantou e me abraçou. Disse que eu era o único que sabia do seu contato com o pai. Ele não tinha contado para ninguém.

Queria ser diferente. Não conseguia. Quando começou a vê-lo não entendia nada. O tempo foi passando até que um dia ele se aproximou e disse que era o seu pai. Ele sabia que a noite eu pedia a Deus para trazê-lo de volta. Afinal que adiantava uma medalha escrito nela herói?

Se os tais heróis não voltam para casa, será que vale a pena ser herói? – Não entendi bem o que Lito queria dizer, mas ele continuou dizendo que sua mãe chorava muito. Tentava disfarçar quando ele estava presente, mas seus olhos sempre vermelhos denunciava.

Em um natal, quando tinha 6 anos, continuou Lito, eu pedi a Papai Noel que trouxesse o meu pai de volta. Ele voltou à noite, e sentado no chão ao pé da minha cama, conversou comigo por um longo tempo. Fiquei alegre, quando acordei e procurei minha mãe não vi mais papai.

Ele me aparecia não freqüentemente. Sempre a me dizer o que ia acontecer, o que devia fazer, me orientava com minhas lições, dizia que estava sempre junto de mim em todos os lugares. Aquilo estava se tornando para mim uma obsessão finalizou ele.

Olhe meu amigo, continuou. Adoro o meu pai, mas já pedi a Deus para levá-lo para junto de si. Acho que está na hora de ele partir. Não queria um pai assim, queria ele em carne e osso. Disse isto para ele ontem depois que falou com você. Olhe você é o único que conseguiu vê-lo. Minha mãe não acredita em mim e nem o Padre Lívio.

Acho que tudo aconteceu assim como estou contando. Pode ser que tenha tido outras passagens que não me lembro. Só sei que um semana depois, Lito me procurou e disse que se pai ia embora. Despediu dele e disse que o esperaria em outra vida. Disse para não me preocupar. Que iria viver até aos 90 anos. Já pensou?

Lembro que o tempo passou. Dois anos depois fui eleito monitor da Patrulha. Lito era o meu sub. Nos entendíamos perfeitamente bem. Não houve mais comentários do seu pai. Lito se tornou alegre, bem disposto e todos gostavam muito dele.

Poucos se lembravam da enchente, do raio e de várias outras premonições dele, claro, pois seu pai era o seu confidente. Muitos fatos se sucederam de forma natural. Vivi o escotismo em sua plenitude. Nunca vi um acidente, um braço ou perna quebrada, um afogamento. Nada. Agradeço a Deus por isto.

Mas também tenho que agradecer ao pai de Lito, pois poderia ter morrido com um raio ou com uma enchente. Estou vivo. Graças a Deus.

Daquele passado distante, tento reviver o que aconteceu com Lito. Não lembro. Lá pelos idos de 1971, estava dirigindo um curso de Chefes de Alcatéia, e notei que um aluno me parecia conhecido. Olhei sua ficha, e estava escrito Lindomar Fernando Neto. Não me toquei. No final do curso, ele me olhou e disse – Não lembras meu caro chefe?

Lembrei! Agora já homem era a cara do seu pai. Nos abraçamos, fomos após as despedidas juntos até um restaurante. Jantamos, tomamos uma cerveja (ele só refrigerante) e me contou sua vida depois da minha saída. Não quis casar. Achou que devia ser um discípulo da Igreja de Deus. Entrou em um seminário e agora era um padre da paróquia de São Manoel.

Convidou-me para um dia ir visitá-lo. Eu iria surpreender com o seu Grupo Escoteiro. Sorri. Quem diria! Bem como todo final de história feliz, ele também sorriu. Ele foi para um lado e eu fui para o outro. Nunca mais nos vimos. E que seja o que Deus quiser.

E quem quiser que conte outra...

“Vê se você, que pode mais que a gente,
E quem tem uma força sem igual,
Me pode dar agora este presente
Em uma noite, milagrosa de natal!”

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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