quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

LIRIO DO CAMPO - A MENINA QUE SONHAVA SER ESCOTEIRA


De quando em quando, destaquemos uma faixa de tempo para considerar quantas afeições e oportunidades preciosas temos perdido, unicamente por desatenção pequenina ou pela impaciência de um simples gesto.
Emmanuel

LIRIO DO CAMPO – A MENINA QUE SONHAVA SER ESCOTEIRA

Já faz tempo. E quanto tempo! Participava como chefe de um Grupo Escoteiro onde permaneci por mais de 10 anos. Era um bairro simples, de classe media e muitas favelas já urbanizadas próximas.  Habitava este mundo escoteiro vivendo cada dia, cada hora, cada minuto da jornada sem contagem regressiva.

Sabia de cor o nome de todos escotistas, pioneiros, guias e seniores, escoteiros e escoteiras, lobinhos e lobinhas. Sem contar muitos pais que foram e são até hoje meus amigos.

Era uma rotina de sábados, praticamente toda a tarde isto quando a noite era concatenada, e só chegava a minha casa após 22 ou 23 horas. Não havia desânimos. Fazia aquilo com prazer e regozijo. Ajudava o desenvolvimento das reuniões sem dar “pitaco”, não influenciando as chefias, mas mantendo após as reuniões a posição de aconselhador e tutor, isto para melhor desenvolvimento de todo efetivo em nosso Grupo Escoteiro.

Eu ainda não tinha notado a sua presença. Só aconteceu alguns sábados depois. E olhe que eu sempre fui bom observador. Ela não tinha mais que dez ou onze anos. Magrinha, vestida com simplicidade, sempre com a mesma roupa, um sorriso ingênuo e cativante, mostrava ser uma jovem que prezava sua apresentação pessoal.

Cabelos castanhos compridos, com uma pequena trança pendendo para frente, escondendo um pouco de si própria. Seu semblante era de uma atenção cautelosa, a me olhar de soslaio. Vi que não tirava os olhos da tropa das escoteiras.

Seus sentidos eram os mesmos das meninas que ali brincavam. Riam, cantavam e ela de longe sonhava em ser uma delas como estar em uma patrulha participando. Não houve interferência de minha parte. Ela permanecia durante todo o tempo da duração da atividade das escoteiras, confinada em um canto do pátio e nunca se aproximava.

Um dia, durante a promessa de uma das jovens, ela chegou mais perto, e vi seus olhos brilharem quando a promessa foi dita de viva voz pela noviça. Quando foi entregue o lenço e distintivo de promessa, seus olhos encheram-se de lágrimas. Notei que ela sonhava em ser uma delas e aquele momento prodigioso transpunha no seu imaginário, forçando entre o sonho e a realidade uma transferência física, como a estar ali com a mão direita em saudação, falando aquelas magníficas palavras que já sabia de cor.

Mesmo assim não me aproximei. Sua expressão foi totalmente alterada quando a chefe perguntou se ela poderia participar de um jogo. Das três patrulhas duas estavam com sete e uma com seis. Completar seria mais lógico para haver igualdade de competição.

Não há palavras para descrever sua alegria. Incrível! Nunca vi ninguém participar de um simples jogo com tanta energia e vibração, de algum que se não foi ficaria agora marcado para o resto da vida. As outras escoteiras não observaram nada. Nem a chefe. Ao final do jogo um agradecimento e ela conseguiu pelo menos ficar mais próxima, ouvindo, tentando entender o que as patrulhas faziam com cabos pequenos, bandeirolas, e uma parafernália de papeis e desenhos misteriosos.

A reunião terminou e ela não estava mais lá. Fora como chegara. No sábado seguinte não apareceu. Esqueci completamente dela. Mas lá estava no outro sábado. Agora procurava ficar mais perto. Fez amizade com uma das meninas e de soslaio compartilhava de uma ou outra patrulha, isto quando a chefe ou a assistente não estavam presentes.

Achei que estava na hora de intervir. Interpelei-a polidamente perguntando se pretendia ser mais uma delas. Ou seja, participar como escoteira. Ela não me respondeu. Seus olhos de novo encheram-se de lágrimas e saiu correndo. Não entendi. Achei que devia tomar uma atitude. E tomei.

No sábado seguinte a chamei até o escritório da nossa sede. Conversei com ela, mas sempre respondia em monossílabos. Tentei ser amigo, saber de seus pais e quando falava neles ela se apavorava. Falei com a chefe sobre o assunto e pensei que ela teria uma melhor abertura com a menina.

Contou que sua mãe trabalhava fora, inclusive aos sábados. Seu padrasto nada fazia e não admitia ela participar. Quando insistiu levou uma sova. Ela explicou que não chorava, nunca. Era ponto de honra para ela. Não fora a primeira vez e nem seria a última.

Sua mãe sabia, mas nada fazia a respeito. Já era do seu conhecimento há tempos que ela apanhava do padrasto. Ele costumava ficar fora por meses. Durante estes períodos achavam que o paraíso agora era real, mas durava pouco. Ele voltava mais perverso que antes. Sua mãe tentou várias vezes voltar a sua terra no norte do país, mas ele sempre violento e bestial sempre a fazia desistir.

Parece historia da Cinderela sem sapatinhos de cristal e com um final sem o príncipe encantado, mas não. Esta é real. Aconteceu. Nada podíamos fazer. É impossível o escotismo ajudar neste processo, pois ele depende e muito dos pais. Ela continuou a vir e assistir as reuniões. Orientei a chefe para não abrir muito sua participação. Era uma situação cruel e talvez patética, no entanto podia evitar situações imprevisíveis no futuro.

Não sabíamos com quem estávamos lidando. Podíamos ter problemas com os pais não só dela como os demais. Todo cuidado deveria ser tomado. Num sábado com uma garoa forte, a reunião das sessões estavam sendo realizadas dentro do salão de festas e na área coberta, pequenas por sinal para alocar a todos, mas com jeitinho sempre conseguíamos.

Nestes dias chuvosos, após algumas atividades de praxe, sempre fazíamos uma Conversa ao pé do fogo, onde desenvolvíamos programa similar ao “famigerado” Lampião do Conselho. Não fiquei durante o desenrolar da atividade. Fui até o escritório, pois estavam lá dois diretores e alguns pais que queriam fazer a inscrição dos seus filhos. Apesar dos dirigentes saberem como agir, sempre ficava junto para alguns senões.

Observei a porta um homem dos seus 50 anos, meio grisalho, estatura mediana e cá prá nos, semblante arrepiante e com uma cicatriz no queixo, vestido de maneira desleixada com um olhar nem tanto amistoso. Dirigiu-se ao meu encontro e levantou levemente sua blusa mostrando estar armado. O nervosismo apareceu e mesmo tendo alguma experiência no assunto, não gostei da maneira com que ele se apresentava.

Foi logo dizendo que era o pai da “Lírio do campo” (nome fictício, para preservar a jovem que hoje pode estar lendo esta sua história). Perguntou quem autorizou sua participação no grupo, o que pretendíamos, pois ele não tinha permitido e agora o pior tinha ocorrido. “Lírio do campo” tinha desaparecido.

Após ter insistido em participar e não sabendo qual era a intenção de vocês, vetei e a proibi de sair aos sábados. Esclareci que este movimento não era para ela, pois se tratava de pessoas “endinheiradas” e romanescas. Precisava isto sim de estudar e logo que fizesse quinze anos conseguir um bom emprego para ajudar a família.

Para minha surpresa ela jogou uma chaleira de água quente no meu rosto (fiquei sabendo depois que foi por defesa própria) e saiu correndo. Isto foi ontem de manhã e até agora não voltou. Fugiu de casa sem nada levar. Procurei por ela em todo o bairro e nada.

Tentei educadamente argumentar, mas ele foi enfático e deselegante. Encostou o dedo no meu nariz e disse que eu era o responsável – ameaçou que se ela não voltasse eu sofreria de um jeito ou de outro. Insistia que havia colocado “minhocas” em sua cabeça e pagaria com a vida pela minha ação incoerente no caso.

Fiquei calado, não era hora e nem adiantava retrucar. Os diretores e dois pais que permaneciam na sala estavam atemorizados e sobressaltados.  Claro que eu também estava espantado e assustado. Não era nenhum herói e de karatê e luta livre não entendia nada. Pelo sim ou pelo não, ele saiu me ameaçando que se ela não aparecesse até o dia seguinte, alguém iria pagar com conseqüências funestas.

Ficamos pasmos. Sem saber como agir. O que fazer? – Todos os caminhos indicavam que a paciência e a cordialidade era essencial. Conversei com um pai de um sênior, oficial da Polícia Militar que se prontificou a tomar providencias, mas achei que agora o momento não era oportuno. Claro, um assassinato, uma áspera briga, alguém de uniforme trocando sopapos em plena sede, não estava em meus planos.

No sábado seguinte, ainda preocupado, já que o padrasto de “Lírio do campo” podia aparecer, tivemos uma bela surpresa. A mãe de “Lírio do campo” surgiu juntamente com ela e elegantemente se apresentou. Chorando vez sim vez não, contou sua história, salpicada de novas informações, pois conhecíamos parte quando conversamos com a jovem. Disse para não nos preocuparmos, pois ele tinha viajado e ela tinha certeza que iria demorar em regressar.

Não vou repetir aqui uma história que aparece às dezenas nos jornais escritos e televisados todos os dias. A única diferença era envolver toda uma organização voltada para os jovens, com uma pessoa extremamente violenta e que se algum fato nefasto pudesse acontecer, poderíamos perder todo o trabalho realizado e olhe que não eram poucos.

Na semana seguinte, marcamos uma reunião da Comissão Executiva, discutimos todos os ângulos do problema, e a solução não estava à vista. Ir a delegacia fazer um Boletim de Ocorrência estava fora de cogitação. (apesar de ser o mais correto) Enfrentar o homem violento também. Não éramos super-homens e nem tampouco arrojados para tal situação.

Uma jovem que amava o escotismo sem ter sido escoteira. Uma jovem que sonhava dia a dia em ser uma a mais, na patrulha dos seus sonhos. Uma família que não existia. Um padrasto violento, uma mãe subjugada.

Deixamos como se diz na gíria, ver como fica com o passar do tempo. Ele o padrasto não apareceu mais. “Lírio do campo” também não. Não tivemos notícia de sua mãe. O tempo passou. Não mais que quatro meses.

Num sábado de sol, pela manhã, estávamos preparando material para o acampamento geral do Grupo Escoteiro, que fazíamos sempre com um grupo irmão de alguma cidade próxima e eis que para nossa surpresa, lá estava “Lírio do campo” e sua progenitora. Ambas sorridentes me procuraram para ver se podia aceitar sua filha como escoteira.

Disse que seu marido tinha desaparecido há muitos meses e souberam que ele havia falecido, pois junto com outros bandidos tentara furtar um banco em outro estado e tinha sido vítima por eles próprios durante a fuga. Ela não se interessou em saber detalhes e nem lá foi para averiguar mais de perto. Estava livre de um homem violento e agora trabalhando, pensava só na felicidade da filha.

Não era assim o procedimento de admissão, contudo este era um caso especial. “Lírio do campo” foi admitida. Inclusive, abrimos uma exceção e ela participou do acampamento programado no mês seguinte. Riu, cantou, brincou, enturmou, confraternizou e acredito que aquele primeiro acampamento foi o clímax de seu sonho, de seus desejos infantis em participar de uma grande Organização fraterna que só o Escotismo sabe oferecer.

Ficou conosco por 6 anos. Foi escoteira e guia. Conseguiu a primeira classe e como guia alcançou a eficiência II. Sempre era a primeira a chegar e a última a sair. Sua mãe fez um lindo uniforme. Foi uma grande emoção no dia de sua Promessa. Ela se orgulhava em vestir aquele traje e todos que a conheciam tinham por ela uma grande afeição e ternura.

Um dia ficamos surpresos em saber que sua mãe voltaria para a casa de seus pais no norte do pais. Ela teve que ir junto. Fomos todos nós seus amigos, o que surpreendeu a muitos na rodoviária local na sua despedida e viagem. Toda a tropa das escoteiras havia comparecido. Muitos também dos seniores, dos escoteiros e das guias. Contei mais de 8 chefes presentes.

Ali mesmo na rodoviária nos despedimos com a Canção da despedida. Muito choro, mas todos orgulhosos de “Lírio do campo”. Todo o fato de antes e do agora foi repassado em minutos em meu pensamento.  Uma historia com um final feliz.

Cinco anos depois, uma surpresa - recebemos na sede a visita de “Lírio do Campo”, desta vez acompanhada de seu marido e dois filhos. Apresentou-nos a todos com orgulho. Estava a passeio e contou que era Akelá de lobinhos em um Grupo Escoteiro na cidade onde morava. Sorria nos encantando a todos.

Havia ainda muitas jovens que eram de sua época. Uma grande confraternização e lembranças amigas. De vez em quando recebo uma cartinha e agora com o email sempre solícita troca de conceitos, pede sugestões, envia fotos e vai contando de uma maneira amável e jovial o dia a dia do seu Grupo Escoteiro, que conforme diz vai admiravelmente bem na trilha do sucesso. 

Assim como várias outras, as historias contadas ou narradas onde se começa com a dor, com o ódio, com a falta de esperança, também esta se firma dentro deste prisma para no final abrir o sol depois da chuva, mostrando que o escotismo é maravilhoso tanto nas horas difíceis como nas horas de alegria.

E quem quiser que conte outra....

“Pois com o critério que julgardes sereis julgados; e com a medida com que tiverdes medido vos medirão também.”
 JESUS. (Mateus, 7:2.)

Um comentário:

  1. Chefe Osvaldo, ontem mesmo na reuniao eu estava comentando com a chefia e diretoria do grupo sobre suas cronicas, dizendo que deveria ser leitura obrigatoria a todos os pais, e aos meninos que desejam entrar no movimento escoteiro, por ter um cheiro de terra molhada, de comida de acampamento, de cansaço, de aventura, de desafio e muito muito de espirito escoteiro.

    So discordo do senhor, se assim me permite quando fala que é um velho escoteiro, ser escoteiro é ser jovem e o senhor é ainda muito jovem, e rejuvenesce ainda mais quando se lembra das historias vividas e nos ensina atraves delas.

    Muito obrigada mesmo!

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Era uma vez... Em uma montanha bem perto do céu...

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